Quem nunca fez essa pergunta? De um jeito ou de outro, todos nós já nos deparamos com essa questão. Mas será que há uma resposta simples e pronta para ela? Penso que não. Entretanto, há quem tente produzi-la com base no texto de 1Pe 4.10, afirmando que a infinidade de denominações se deve à “multiforme graça de Deus”, ou seja, as muitas divisões seriam, na verdade, uma maneira de Deus oferecer um cardápio variado de opções aos não crentes. Assim, os mais calmos poderiam procurar uma igreja mais calma, enquanto os mais agitados se encaixariam perfeitamente em um ambiente mais movimentado. Apesar de esta interpretação ser bonita e “politicamente correta”, sinto dizer que ela não expressa o real significado do texto, uma vez que o mesmo trata da diversidade de dons espirituais, não de denominações.
Como responderemos, então, a esse
questionamento? Acredito que a diversidade de denominações resulta da
idiossincrasia[1].
Porquanto, não há ser humano igual ao outro. Discordar faz parte da essência da
humanidade, e é o que, de fato, nos particulariza, nos torna pessoas. Se
pensássemos exatamente igual abriríamos mão da individualidade. Deixaríamos de
sermos humanos.
Essa perspectiva a respeito do ser
humano vem perturbando os pensadores desde a Antiguidade. Filósofos como
Parmênides, Sócrates e Platão, já se mostravam preocupados com essa
caraterística da humanidade. Tal inquietação, conforme destaca Hannah Arendt
(apud. Bauman, 2003, p.177), brotava do fato de “que a verdade, tão logo proferida, é imediatamente transformada numa opinião
entre muitas, contestada, reformulada, reduzida a um tema de discurso entre
tantos outros”. O mais impressionante, no entanto, é que homens pertencentes a
um tempo privado do avanço tecnológico da atualidade, conseguiram perceber algo
que buscamos frequentemente negar, a saber, a incapacidade humana de não discordar.
Não
conseguimos concordar em tudo. Sempre haverá um ponto do qual discordaremos,
uma opinião contrária ao consenso. Todavia, a discordância em si não constitui
um obstáculo à comunhão. É a forma como a encaramos, a maneira como reagimos
diante dela, que pode erguer-se como barreira e dificultar as relações. Como
afirma Bauman (op. cit., p. 178), “a convicção de que nossas opiniões são toda
a verdade, nada além da verdade e sobretudo a única verdade existente, assim
como nossa crença de que as verdades dos outros, se diferentes da nossa, são 'meras opiniões', esse sim é um obstáculo”.
Não
estou admitindo, com isso, que não existem verdades absolutas. Se o fizesse,
não poderia apresentar-me como cristão, pois cremos que uma dessas verdades
insofismáveis é a existência de um Deus único e Todo-poderoso, Criador,
sustentador e governador do cosmos. Contudo, penso que há diferentes
perspectivas em relação à essas verdades, o que não as diminui. São apenas
pontos de vista distintos, mas que contemplam o mesmo absoluto. Um exemplo
disso são as diversas interpretações a respeito da salvação, da ação do
Espírito Santo, dos anjos e dos demônios. Cada grupo defende sua posição com
unhas e dentes, defendendo que é a mais próxima da verdade. De certa forma,
todos nós buscamos essa solidez. Não queremos abraçar uma fé que se liquefaça
com facilidade, almejamos algo palpável, bem definido, estruturado. Por
isso, buscamos respostas diretas e sem ambiguidade. O grande problema, porém, é
que, muitas vezes, esse anseio nos faz esquecermos o amor pregado por Jesus.
Acabamos nos perdendo em nossas discussões teológicas, quando, na verdade,
deveríamos envidar esforços para proclamar o evangelho, no discurso e na
prática. “Há muita impaciência com qualquer coisa ou qualquer pessoa que sugira
outra perspectiva, outro modo de olhar para a mesma questão, outra resposta que
seja digna de investigação” (TUTU, 2012, p. 24).
Como cristãos, precisamos concordar
naquilo que é essencial, pois em todas as vertentes há verdades fundamentais e
imutáveis, a saber: a divindade de Cristo, a salvação pela graça, a doutrina da
Trindade, o reconhecimento do homem como pecador, a crença na obra redentora de
Cristo, a existência do céu e do inferno, etc. Não obstante, por mais que
concordemos nesses pontos, há outros que discordamos. Estes, entretanto, não
são essenciais, são verdades secundárias, resultantes do distanciamento
histórico em relação aos acontecimentos narrados na Bíblia. Como não estávamos
presentes, por exemplo, no dia de pentecostes ou em um culto da igreja de
Corinto do primeiro século, nos deparamos com uma série de teorias a respeito das
línguas e do recebimento do Espírito Santo. Não dá pra dizer com convicção quem
está certo, só se estivéssemos lá. Por isso, ficamos com as interpretações que
julgamos coerentes. Até porque, nenhuma delas compromete a salvação do
indivíduo. Falar línguas ou não jamais garantirá ou impedirá a entrada de
alguém na morada celeste.
Sempre
haverá pontos conflitantes entre os diversos segmentos evangélicos. Isso não é
um fenômeno recente, a discordância esteve presente na igreja desde o
princípio. Paulo, por exemplo, discordava da visão de Pedro e dos outros
cristãos de Jerusalém. Estes criam que os gentios convertidos deviam observar
os ritos e preceitos do judaísmo, aquele entendia que bastava que eles
recebessem a Cristo como Salvador. Foi essa controvérsia que os levou à
realização do primeiro concílio, em 51 d.C (At 15). Perceba, contudo, que os
dois lados da discussão criam em Jesus como o Cristo, Senhor e Salvador de suas
vidas, mas discordavam em alguns pontos. Por fim, cada um teve de abrir mão de
algo para manter a unidade. Paulo aceitou que se mantivesse o preceito judaico
relativo à abstinência do sangue, enquanto os cristãos de Jerusalém concordaram
em liberar os gentios dos demais costumes dos judeus. Porém, do essencial eles
não precisaram abdicar, pois, nisso, concordavam.
Essa “concordância discordante” é o
nosso ideal. Embora discordemos em muitos aspectos, temos de concordar no
essencial. A visão cristã não pode ficar restrita aos limites de nossas
confissões doutrinárias, nem as denominações podem ser idolatradas como as
únicas detentoras da verdade. Pelo contrário, precisamos compreender que todas
as vertentes têm suas falhas, inclusive a nossa. Não existe denominação melhor
que a outra. Só há maneiras distintas de enxergar aquilo que não é essencial.
Entrementes, isso não significa que não
temos de manter a identidade denominacional. De maneira nenhuma. A identidade é
de suma importância, pois ela reflete o posicionamento interpretativo frente às
verdades secundárias da nossa fé[2].
Quem não tem uma posição definida fica a mercê das heresias que tão de perto
nos rodeiam. “É preciso manter-se firme às crenças que temos, sem
fingir que todas as religiões são a mesma coisa, pois claramente não o são”
(TUTU, 2012, p. 26).
Não estou
defendendo, com base nisso, uma mixofobia[3].
Pelo contrário. Acredito que é possível nos relacionarmos como irmãos, filhos
do mesmo Pai, sem abrirmos mão de nossas convicções. Afinal de contas, não é
isso que acontece em nossas famílias? Quantos irmãos consanguíneos, embora se
amem e convivam bem, discordam acerca de um ou outro ponto? Com certeza,
muitos. Alguns, inclusive, possuem ideias diametralmente opostas. Mesmo assim,
conseguem viver em comunhão.
Inobstante,
há sempre quem condene essa “concordância discordante”. Isto porque, imaginam que
todos deveriam, por sermos cristãos, pensar da mesma forma tanto no
tocante às verdades fundamentais quanto às secundárias. Não se trata de uma
simples ortodoxia, mas de uma fé homogênea, uma espécie de ecumenismo
evangélico. O problema é que, para chegar a esse ponto, seria necessário eleger
uma dentre as muitas interpretações como única. É exatamente isso que fazem os
defensores dessa homogeneidade: elegem o neopentecostalismo (ou o
pentecostalismo) como ortodoxia, considerando a teologia das igrejas históricas
como heresia. Porquanto, acham que todos deveriam concordar com a ortodoxia
atual (o pensamento neopentecostal), cuja estrutura transcende os limites
institucionais, uma vez que faz parte do pensamento de membros de todas as
denominações. Em suma, os mesmos que criticam a identidade doutrinária,
defendem, na verdade, outra identidade, a neopentecostal. Quem discorda disso,
é visto como herege. Lembra a Idade Média, não é?
Outro ponto defendido pelos críticos da
identidade doutrinária é a ideia de que as denominações deveriam promover
intercâmbios entre si. De modo que os pregadores e equipes de louvor pudessem
transitar livremente entre as diversas confissões de fé. Quando uma igreja se
recusa a participar desse intercâmbio, é acusada de não amar os irmãos. No
entanto, é necessário frisar que o amor fraternal do qual a Bíblia fala é muito
maior do que estar junto em uma programação ou poder pregar na igreja do outro.
O amor deve ser manifestado no trato diário, fora dos limites físicos do
templo. O fato de nos amarmos não significa que devemos gostar de fazer tudo
juntos. Eu, por exemplo, amo minha esposa, mas não gosto de comprar roupas com
ela, pois, no fim do dia, fico esgotado de tanto entrar e sair de lojas. Da
mesma forma, ainda que nos amemos fraternalmente em Cristo, há coisas que não
gostamos de fazer juntos, como, por exemplo, cultuarmos juntos. Por mais que alguns
não tenham coragem de reconhecer, não nos sentimos tão à vontade fora dos
limites de nossas confissões doutrinárias. Isto porque, enquanto os crentes
“tradicionais” são mais comedidos, os pentecostais são extremamente agitados;
enquanto os “tradicionais” não creem em línguas extáticas e revelações extra
bíblicas, os pentecostais têm esses pontos como carro-chefe de sua confissão de
fé. Decerto, um culto que reúna esses dois grupos trará incômodo para alguém. Se
o culto for conduzido segundo a prática “tradicional”, os pentecostais ficarão
inquietos, sentindo-se podados. Por outro lado, se a programação seguir o
estilo pentecostal, os tradicionais se sentirão como peixes fora d’água. Por
isso, o melhor mesmo é que cada grupo permaneça na sua prática de culto, se
unindo para outras atividades que visem à propagação do evangelho e a defesa da
fé, como eventos de caráter social, manifestações públicas, distribuição de
Bíblias, etc.
É claro que isso não nos impede de
estarmos juntos em programações normais ou especiais. Se o indivíduo sentir-se
à vontade, não há problema algum. Mas sermos obrigados a darmos oportunidade a
cantores e pregadores de outras denominações, sob a ameaça da “falta de amor”,
é, no mínimo, temerário. Porque, normalmente, quando alguém prega, canta ou
ministra, é inevitável a manifestação de sua identidade, seja “tradicional”,
pentecostal ou neopentecostal. Por conta disso, inúmeros problemas resultam
desses intercâmbios interdenominacionais, deixando pastores em má situação
diante de suas ovelhas, tendo que, muitas vezes, corrigir os conceitos
apresentados. Diante disso, considero mais saudável que apenas pregadores e
cantores da mesma confissão doutrinária (ou de mesmo pensamento teológico)
compartilhem os púlpitos.
Alguns podem achar minha postura
discriminadora. Porém, muitos, conquanto recebam pessoas de outra denominação
as consideram menos crentes, frias, etc. Quando alguém pergunta: “qual a sua
igreja”? Muitos, ao saber que se trata de uma igreja tradicional, olham com
indiferença, como se fôssemos menos crentes. Isso é discriminação! Deveríamos
ficar felizes por essa pessoa servir a Cristo, não fazer pouco caso porque ela
não é da mesma denominação.
Somos filhos do mesmo Pai. Mas, pense
comigo: se você tivesse um irmão que pensasse totalmente diferente em relação a
educação dos filhos, o deixaria ensinar seu filho? Certamente, vocês iriam
conviver, se amar, se ajudar, mas na sua casa o ensino continuaria sendo sua
responsabilidade. Não querer que seu irmão dirija seu carro, porque você o
considera mau motorista, não significa que não o ame. O amor cristão deve ser
mostrado no dia-a-dia. Programações não mostram amor, só demonstram uma postura
politicamente correta.
Quando o assunto é a cultura alheia,
todos são unânimes em reconhecer que o indivíduo não deve abrir mão dela.
Todavia, quando se trata da identidade denominacional, muitos querem
liquefazê-la, argumentando que nada mais é que uma subcultura. Sinceramente,
nesse tempo tão líquido que vivemos, onde os modelos estão desfigurados, a
moral esfarelada e o amor decadente, o que mais precisamos é de identidade.
Pr. Cremilson
Meirelles
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
CHAMPLIM,
Russel Norman, 1933- O Novo Testamento
Interpretado: versículo por versículo. São Paulo: Hagnos, 2002. 6 v. 806 p.
BAUMAN,
Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
TUTU, Desmond M. Deus não é
Cristão. Tradução: Lilian Jenkino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil,
2012.
[2] Considero “verdades secundárias”
os posicionamentos baseados em interpretações, tais como as visões relativas ao
batismo no Espírito Santo, aos dons espirituais, doutrina da salvação, etc. As
fundamentais, por outro lado, seriam aquelas para as quais não há contestação
no meio cristão, a saber: a divindade de Cristo, a salvação pela graça, a
doutrina da Trindade, o reconhecimento do homem como pecador, a crença na obra
redentora de Cristo, a existência do céu e do inferno.
SE A BÍBLIA É UMA SÓ, POR QUE EXISTEM TANTAS IGREJAS DIFERENTES?
Reviewed by Pr. Cremilson Meirelles
on
18:32
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Amigo, muito bom artigo! Parabéns! Pr. Marcio
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