Vez ou outra, aparecem novas teses a
respeito do verdadeiro sentido de alguns textos bíblicos. Muitas delas são
resultado do desejo sincero de ser fiel às Escrituras. Porém, essa motivação
não exclui a possibilidade do erro. O grande problema, entretanto, é que, na
maioria das vezes, os equívocos não podem ser verificados pelo cristão que não
possui formação teológica; pois, em alguns casos, a investigação requer
conhecimento dos idiomas originais em que a Bíblia foi redigida. Afinal, para
justificar suas teorias e conferir maior autoridade aos argumentos, muitos
recorrem ao grego e ao hebraico. Diante disso, resta aos leigos somente
aceitar, visto que não podem verificar se o que foi dito é realmente o que as
Escrituras afirmam nos idiomas originais.
É exatamente isso que ocorre no caso
da teoria de que as aves mencionadas em 1 Reis 17.4,6 não seriam corvos, mas
sim mercadores árabes. Seus proponentes, incomodados com a ideia de que Deus
teria usado aves para alimentar seu profeta, alegam que o texto não foi
traduzido adequadamente. Segundo eles, ao invés de “corvos”, a tradução correta
seria “árabes”. A base para essa argumentação é o fato de que as mesmas
consoantes hebraicas são empregadas para se referir a “corvos” e “árabes”. Em
adição, eles ressaltam que a classificação dos corvos como animais imundos (cf.
Lv 11) inviabiliza a versão tradicional. Como a maior parte dos evangélicos não
domina o hebraico bíblico, muitos acabam aceitando esses argumentos.
Não
obstante, essa tese não é acolhida pelos léxicos mais conceituados. O Novo
Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, por
exemplo, explica que a palavra traduzida como “corvos”, em 1Reis 17.4,6, é a
forma plural do hebraico ‛ōrēḇ, cujo significado é corvo.[1] Isso é confirmado por Genesius,[2] Brown-Driver-Briggs[3] e Koehler[4]. Contudo, como observa
VanGemeren, alguns lexicógrafos medievais consideraram estranho que Deus
empregasse aves impuras para servir o profeta. Por conta disso, desenvolveram a
teoria de que a palavra correta e mais adequada ao contexto seria o hebraico ‛ărḇîm
(árabes), e não ‛ōrᵉḇîm (corvos). Sob essa perspectiva, Deus teria usado
mercadores árabes para alimentar Elias.[5]
Conquanto
essa interpretação pareça fazer sentido para alguns teólogos contemporâneos,
ela traz consigo algumas dificuldades. Talvez a mais gritante seja o fato de
que nenhuma das traduções bíblicas mais conhecidas a endossa. Nem mesmo a versão
das Testemunhas de Jeová substitui os “corvos” por “árabes”. Isso é no mínimo
suspeito. Até porque, se o sentido mais evidente do termo hebraico é “árabes”,
por que isso não aparece nas traduções? Até versões mais antigas, como a
Septuaginta, a Vulgata Latina e a Peshita, mantêm a ideia de que o profeta foi
alimentado por corvos. Além disso, o aparato crítico da BHS[6] não menciona nenhuma
variante desses versículos que inclua tal alteração.
Outra
dificuldade é a carência de confirmação histórica. Nem mesmo Flavio Josefo
(37–100 d.C.), um escritor judeu do primeiro século, corrobora essa tese. Ao
contrário, ele ratifica a história de que Elias teria sido sustentado por Deus
através de corvos.[7]
Semelhantemente, o Talmud Babilônico registra que eram os corvos que levavam
pão e carne para Elias todas as manhãs.[8]
Mesmo assim, os defensores modernos
dessa tese asseveram que, como o texto hebraico mais antigo continha somente
consoantes, o sentido dos termos tem de ser deduzido a partir do contexto.
Porém, o que eles chamam de “contexto” é o pressuposto de que os eventos que
não podem ser explicados racionalmente têm de ser rejeitados. Essa premissa
leva o intérprete a preferir os “mercadores árabes” em vez dos “corvos”.
Todavia,
a história dá testemunho de que a tradição oral relativa à pronúncia do texto bíblico
do Antigo Testamento foi preservada no decorrer do tempo e representada
graficamente por intermédio de um sistema de pontuação elaborado pelos massoretas,[9] entre o século VI e
X d.C. Os pontos inseridos no texto pelos tais massoretas ficaram
conhecidos como sinais massoréticos. Esses guardiões da tradição,
baseados na herança fonética preservada por seus antecessores, vocalizaram a
raiz da palavra traduzida como corvos em 1Reis 17.4,6, o hebraico ‛rḇ,
como ‛ōrᵉḇîm (corvos) e não ‛ărḇîm (árabes). Ora, se a teoria dos
árabes estiver certa, temos de concluir que a preservação falhou nesse ponto.
Sendo assim, quem garante que não falhou em outros? Aliás, onde está a prova de
que a preservação falhou? Afinal, o argumento em prol dos “dos mercadores
árabes” carece de fundamentação histórica e manuscritológica.
Outra
fragilidade desse pensamento está no fato de que há várias palavras com
sentidos diferentes que possuem as mesmas consoantes. O nome da primeira letra
do alfabeto hebraico, ՚āleph, é um exemplo disso; pois existem duas palavras
formadas com as mesmas consoantes que ela, mas com sentidos diferentes. Refiro-me
aos termos ՚ālaph (aprender) e ՚eleph (mil). Ou seja, no
hebraico, consoantes iguais não são indicação de sentidos iguais.
Ademais,
apesar de ‛ărḇîm e ‛ōrᵉḇîm serem palavras cognatas, o campo
semântico da raiz abrange muito mais que dois vocábulos. Uma busca simples em
qualquer léxico do hebraico bíblico revela que além de “árabes” e “corvos”, a
raiz inclui as seguintes possibilidades semânticas: “agradar” (verbo ‛ārēḇ),
“mosca” (substantivo ‛ārōḇ), “penhorar” (verbo ‛āraḇ), “material
atado” (substantivo ‛ēreḇ). Ou seja, o simples fato de serem palavras
cognatas não indica que uma possa substituir a outra em qualquer situação.
Logo, argumentar que o termo correto em 1 Reis 17.4,6 é ‛ărḇîm,
simplesmente porque possui a mesma raiz do termo ‛ōrᵉḇîm, seria o mesmo
que dizer que Elias foi, na verdade, alimentado por moscas, uma vez que ‛ārōḇ
e ‛ōrēḇ são palavras cognatas.
Os massoretas realizaram um trabalho
árduo justamente para evitar esse tipo de problema. Isso deve ser levado em
conta. Eles inseriram sinais para vocalizar a raiz do substantivo em tela como ‛ōrᵉḇîm
e não ‛ărḇîm. Mas os adeptos da tese dos “mercadores árabes”
insistem em dizer que o texto consonantal dá margem para as duas
possibilidades. Isso, no entanto, só é verdadeiro se desprezarmos toda a
tradição e desconsiderarmos o silêncio histórico acerca da possibilidade de
substituir “corvos” por “árabes”.
À
luz dessas evidências, penso que a conclusão inevitável é que, de fato, Elias
foi alimentado por meio de corvos. No entanto, uma dúvida permanece: por que
Deus usaria animais impuros para sustentar seu profeta? Para responder essa
pergunta, é necessário atentar para as normas referentes ao contato com animais
imundos, registradas em Levítico 11 e Deuteronômio 14.1-21. Porquanto, nesses
textos fica claro o que era vedado aos israelitas: comer os animais apontados como
imundos e tocar em seus cadáveres. Isto é, não havia proibição alguma relativa à
utilização desses animais para o trabalho. Um exemplo disso é o uso do jumento
(um animal considerado impuro porque não rumina e não tem as unhas fendidas) como
meio de transporte (cf. 1Sm 16.20; 25.42; 1Rs 2.40; Mt 21.1-11). Se fosse
proibida toda espécie de contato com os animais relacionados em Levítico 11,
nenhum judeu andaria de camelo (cf. Lv 11.4).
Destarte,
tendo em vista que Elias não se alimentou dos corvos, mas sim do que eles
traziam, conclui-se que tal feito não constituiu uma transgressão da Lei. Afinal,
Deus os usou para servir Elias, e não para que o profeta os comesse. Apesar
disso, há quem pense que o contato dos corvos com os alimentos tornaria a
refeição imunda.[10]
Contudo, se assim fosse, os suprimentos fornecidos a Davi através de Abigail
teriam sido contaminados, visto que foram transportados em um jumento (cf. 1Sm
25.18). O mesmo ocorreria com as provisões que Jessé enviou a Saul através de
Davi (cf. 1Sm 16.20).
Diante
disso, concluímos que o Todo-Poderoso usou os corvos simplesmente para
demonstrar de maneira mais evidente Seu poder e providência. Até porque, ainda
que os corvos não fossem classificados como imundos, aves levando alimento para
um homem todos os dias, com horário marcado, é um evento claramente miraculoso.
Quem tem dificuldades para crer nisso, em vez de alterar o sentido do texto
para torná-lo mais palatável, deveria, antes, fazer o mesmo pedido que os
apóstolos fizeram em Lucas 17.5: “Acrescenta-nos a fé”.
Deus
nos abençoe!
Pr.
Cremilson Meirelles
[1] Cf. VANGEMEREN, Willem A. Novo
Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, v. 3. São
Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 521.
[2] GENESIUS, Heinrich Friedrich Wilhelm. Hebrew and Chaldee
Lexicon to the Old Testament Scriptures. London, ENG: Samuel Bagster and
Sons, 1851, p. 652.
[3]
BROWN, Francis; DRIVER, S. R.; BRIGGS, Charles A. A Hebrew and English
Lexicon of the Old Testament. Oxford University Press, 1939, p. 788.
[4]
KOEHLER, Ludwig; BAUMGARTNER, Walter. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the
Old Testament. Leiden:
E. J. Brill, 1994, p. 879.
[5] VANGEMEREN, 2011, p. 521.
[6] Bíblia Hebraica Stuttgartensia.
[7] Cf. JOSEFO, Flavio. História
dos Hebreus. Tradução: Vicente Pedroso. Rio de Janeiro, CPAD, p. 2005, p.
414.
[8] Cf. The Babylonian Talmud. Tract of Sanhedrin, volume VIII,
Chapter XI, p. 384. Curiosamente,
o Talmud diz que os corvos pegavam a carne e o pão da cozinha de Acabe.
[9] Grupo de escribas judeus que desenvolveram,
entre os séculos VI e X d.C., um sistema de sinais para indicar a pronúncia
correta do texto hebraico. Esses sinais ficaram conhecidos como “sinais
massoréticos”.
[10] Cf. CHAMPLIN, Russel Norman. O
Antigo Testamento Interpretado Versículo por versículo, v. 2. São Paulo:
Hagnos, 2001, p. 1434. Champlin comenta que os animais imundos eram impróprios para
transportar alimentos. Se o fizessem, a comida seria contaminada pelo toque do
animal.
Excelente explicação.
ResponderExcluirNosso Deus é poderoso.
Aleluia!
ExcluirAmém, excelente e esclarecedora explanação Pastor. Que Deus continue te abençoando poderosamente
ResponderExcluirAmém!
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