Introdução
Conquanto o relato da cura do paralítico no tanque
de Bethesda (cf. João 5.1-9) tenha se tornado tema de canções e pregações
populares, há quem pense que os eventos narrados no texto não ocorreram da
maneira como são apresentados nas Escrituras. Para esses, a presença de um anjo
no tanque bem como a movimentação das águas, são o registro de uma das
crendices daquele tempo. Com base nesse pensamento e a despeito do testemunho
bíblico, muitos têm defendido que nunca houve um anjo agitando as águas daquele
tanque.
Apesar de não haver nada no texto que justifique
essa tese, suas premissas têm encontrado ampla aceitação entre os pregadores
evangélicos. Por conta disso, vez ou outra, essa ideia é comunicada por meio do
púlpito; o que contribui para sua “oficialização”. Ou seja, mesmo que não haja
respaldo bíblico, a repetição vai, pouco a pouco, conferindo legitimidade à
teoria e tornando-a inquestionável.
Contudo, se analisarmos friamente esses argumentos
concluiremos que, ao chamar o relato de crendice, esses pregadores estão
dizendo que a Bíblia está errada. Afinal, apesar de ela afirmar que um anjo
descia e movimentava as águas, não era isso que realmente acontecia. Em outras
palavras, a Escritura fornece uma informação que não condiz com a realidade.
Todavia, em nenhum lugar da Bíblia as afirmações do
referido trecho são negadas ou desqualificadas. Por que, então, alguns insistem
em dizer que essa informação deve ser descartada? Como resolver esse dilema?
Antes de propor uma solução, é
importante frisar que, ao apontarmos a aparente incoerência e falta de respaldo
da tese supracitada, não estamos chamando todos os seus defensores de hereges
ou de liberais. Muitos, na verdade, propagam esse ensino por falta de
esclarecimento ou por seguirem na esteira de pregadores ou comentaristas
renomados.
Levando isso em conta, e visando
subsidiar uma reflexão mais embasada, nas linhas abaixo apresentaremos a origem
dessa ideia, suas fragilidades e, por fim, ofereceremos um caminho
interpretativo que consideramos mais viável.
1 – Como
surgiu esse dilema?
A bem da verdade, acredito que a
pergunta correta deveria ser: “quem inventou esse dilema?” Até porque, conforme
ressaltado na introdução, o texto não testemunha contra si mesmo. Então, de
onde veio a ideia de que o relato contém informações espúrias? Evidentemente, é
uma conclusão que veio de fora para dentro.
O caminho para inserção dessa teoria
no imaginário cristão foi a crítica textual, uma forma irreverente de tratar o
texto bíblico, desenvolvida a partir do século XIX, cujo pressuposto
fundamental é a ideia de que as Escrituras, como qualquer outro tipo de
literatura, podem conter erros, contradições e acréscimos posteriores ao
fechamento do cânon.
Com a justificativa de ser uma
conclusão resultante da utilização de um método científico, estudiosos
investiram na produção de argumentos que a confirmassem. Isso os levou ao
desenvolvimento de versões críticas do Novo Testamento, baseadas nas variantes textuais.
Esse esforço culminou na produção de uma versão que ficou conhecida como “texto
crítico”, cujo representante mais popular é o Novum Testamentum Graece,
desenvolvido por Eberhard Nestle e Kurt Aland. Por causa dos sobrenomes de seus
principais editores, a obra passou a ser chamada de Nestle-Aland.
Esse texto crítico se tornou a base da maioria das
versões das Escrituras disponíveis no mercado. Ele foi produzido a partir da
recensão[1]
dos manuscritos mais antigos do Novo Testamento. Contudo, sua construção se
fundamentou principalmente em dois manuscritos do século IV d.C.: o Códice
Sinaítico (330-360 d.C.) e o Códice Vaticano (330-360 d.C.), textos que são
frequentemente representados pelas letras ﬡ e B, respectivamente.
Por estarem entre os exemplares mais antigos do
Novo Testamento, os adeptos da crítica textual consideram ﬡ e B como
autoridade infalível para definição do que deve permanecer e o que deve ser
retirado das Escrituras.
Nesses códices, o versículo quatro e
parte do versículo três do capítulo cinco de João estão ausentes. Foi com base
nisso que os críticos passaram a tratar como espúria a informação de que um
anjo movia as águas do tanque de Bethesda. Desde então, essa conclusão foi
inserida em muitos comentários bíblicos e rapidamente chegou aos púlpitos.
Isso é sintomático, pois o papel dos pregadores na
propagação desse ensino chama atenção para a influência dos comentaristas sobre
a pregação. Essa é uma parte do problema que muitos não querem enxergar. Porque
os comentários bíblicos mais procurados são produzidos por teólogos de grande
envergadura, os quais a maioria não ousa questionar. Dessa forma, os leitores
tendem a encarar suas afirmações como revestidas de autoridade. O resultado
dessa postura é a aceitação acrítica de suas premissas. De modo que o pregador
deixa de enxergar pelas lentes das Escrituras para ver através dos óculos do
comentarista.
O perigo dessa perspectiva está na supervalorização
dos comentários em detrimento das Escrituras, haja vista que o intérprete
encara o texto bíblico com desconfiança, mas vê as palavras do comentarista
como confiáveis. Ou seja, é como se transferisse a inspiração da Bíblia para os
comentários.
Não obstante, no tocante ao texto crítico, é
importante estar atento, dado que até mesmo expoentes da teologia cristã
conservadora, como F. F. Bruce e William Hendriksen, utilizam essa obra como
norte para interpretação das Escrituras. Em relação ao episódio narrado em João
5, por exemplo, ambos concluem que não devemos considerar a referência ao anjo
como uma fala do evangelista. Com efeito, essa cena deve ser entendida como uma
nota acrescentada posteriormente ao texto para explicar a razão do grande ajuntamento
de enfermos no local.
Para Bruce, esse acréscimo refletiria “a crença
popular sobre a causa das propriedades terapêuticas atribuídas à água.”[2]
Hendriksen, por outro lado, apesar de entender que o versículo quatro
provavelmente foi construído a partir da opinião do enfermo, expressa no
versículo sete, afirma que “não devemos excluir a possibilidade da atuação
sobrenatural de um anjo.”[3] Até
porque, conforme observa Hendriksen, nem sempre as interpolações trazem
informações falsas. Às vezes, elas expõem um conteúdo verdadeiro.
Mesmo assim, por causa da
fragilização do relato bíblico inerente a essa argumentação, muitos passaram a
supor que a narrativa de João 5.4 descreve uma superstição que predominava
entre os que peregrinavam até o tanque. Uma das bases para esse argumento são
as descobertas arqueológicas encontradas nas proximidades do tanque de
Bethesda. Porquanto, foram identificados naquela região símbolos associados ao
deus grego Asclépio, conhecido pelos romanos como Esculápio, uma divindade
associada à medicina e à cura. A partir daí, desenvolveu-se a tese de que o
lugar em que Jesus curou o paralítico era um centro de adoração pagã.[4]
A despeito da aparente lógica
argumentativa, nas linhas a seguir procuraremos responder a cada uma dessas
acusações. É possível que as respostas não te convençam totalmente, mas, no
mínimo, elas demonstrarão que quem abraça essas teorias tem de lidar com um
dilema fundamental: o enfraquecimento da integridade das Escrituras.
2 – A
evidência interna
Os argumentos apresentados acima
constituem apenas parte da discussão sobre o assunto, haja vista que existem
teólogos que defendem a veracidade e canonicidade da informação registrada em
João 5.3b-4. Por conseguinte, para uma conclusão equilibrada, é preciso dar voz
ao outro lado da controvérsia.
W. Hall Harris, membro da diretoria do Center
for the Study of New Testament Manuscripts[5],
apesar de não ser um dos defensores mais ferrenhos da autenticidade de João
5.3b-4, é um dos teólogos que desconfiam dos argumentos contrários à canocidade
desse texto. Ele entende que a explicação presente no versículo quatro parece
se alinhar com o estilo joanino, o qual é caracterizado por comentários e notas
explicativas para familiarizar o leitor com o contexto.[6]
Essa característica pode ser
identificada em vários trechos do evangelho de João. Senão vejamos: no encontro
de Jesus com a mulher samaritana, o evangelista observa que os judeus não se
comunicavam com os samaritanos (cf. João 4.9); no relato acerca do discurso de
Jesus em Jerusalém, no último dia da festa dos tabernáculos, ele explica que o
Mestre falava a respeito do Espírito Santo “que haviam de receber os que nele
cressem; porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado” (João 7.39); no
episódio da morte de Lázaro, João informa que “Betânia distava de Jerusalém
quase quinze estádios” (João 11.18); em João 12.6, ele comenta que Judas era
ladrão e não se importava com os pobres.
Seguindo esse raciocínio, Hengstenberg
(1802-1869), um destacado teólogo alemão do século XIX, comenta que o versículo
sete é insuficiente para esclarecer tudo o que é necessário saber para
compreensão do episódio. Em sua opinião, a informação de João 5.3b-4 é
necessária porque é pouco provável que o mesmo narrador que acabara de informar
a localização do tanque, detalhando inclusive o número de alpendres, desejasse
que o leitor deduzisse a razão pela qual o paralítico queria entrar no tanque.[7]
Nessa esteira, Harris[8]
observa que o fato de o versículo ser teologicamente questionável deveria
favorecer a tese de uma omissão intencional, e não de uma interpolação. Ele
salienta também que a concepção de que a leitura mais antiga deve ser a
preferida não oferece segurança suficiente para descartar o texto.
Harris acrescenta que se o versículo
quatro for extraído, o texto parece incompleto, visto que falta uma explicação
para o versículo 7:[9]
“O enfermo respondeu-lhe: Senhor, não tenho homem algum que, quando a água é
agitada, me ponha no tanque; mas, enquanto eu vou, desce outro antes de mim.”
(João 5.7). Além disso, o autor frisa que se o episódio narrado fosse uma
crendice, João poderia tê-la inserido e explicado que era apenas uma
lenda.
No entanto, por mais que essas
observações façam sentido, os defensores do texto crítico objetam dizendo que o
evangelista jamais incluiria uma explicação oriunda de superstições populares.[10]
Entretanto, quem sustenta essa tese tem de lidar com a seguinte questão: Se de
fato as pessoas que buscavam a cura no tanque estavam presas a crendices, por
que os religiosos não aproveitaram para acusar Jesus de alimentar essa conduta?
Afinal, ele curou um indivíduo no lugar em que muitos estavam presos à crença
de que um anjo os curaria. Isso poderia fazer com que alguém concluísse que ele
era o anjo que movia as águas. Esse argumento seria ideal para os propósitos dos
saduceus e fariseus em relação ao Filho de Deus. Mas por que ninguém levantou
esse ponto?
Destarte,
ponderando os pontos fracos da teoria de que João 5.3b-4 seria um acréscimo
posterior, Adam Clarke conclui que não há provas suficientes da inautenticidade
desse texto. Ele reconhece, entretanto, que a legitimidade não diminui o
desafio do intérprete. Afinal, quem se dispõe a analisar esse trecho sob a
perspectiva da sua autenticidade, precisa explicar por que Deus enviara um anjo
para curar pessoas naquele tanque.[11]
Por outro lado, Clarke assevera que
descartar o texto, como fazem os críticos, é “a fuga desesperada de um infiel.”[12]
Apesar de ser uma palavra um pouco dura, concordo com Clarke no sentido de que
textos difíceis não devem ser descartados nem torcidos. O intérprete tem de
lidar com os desafios interpretativos tendo em mente que a Bíblia é a Palavra
de Deus, e não uma colcha de retalhos montada a fim de alinhar-se com o
pensamento dos copistas.
3 – O
testemunho histórico
Na reflexão acerca da legitimidade de
João 5.3b-4, é preciso levar em conta que os pais da igreja não viam o relato
de João como problemático. De acordo com Ambrósio de Milão (339-397 d.C.), por
exemplo, o episódio ocorrera tal como narrado no versículo quatro: “todas as
vezes que o anjo descia, a água se agitava.”[13]
Semelhantemente, Agostinho de Hipona
(354-430 d.C.), pregando sobre esse texto, declarou o seguinte: “E quando é que
se descia à piscina? Quando o anjo avisava, colocando a água em movimento [...]
esse lugar, de fato, era tão santo que um anjo ia até lá movimentar a água.”[14]
Esses escritos, por serem
contemporâneos dos códices citados anteriormente, testificam que o versículo
quatro era conhecido e considerado legítimo no século IV. Além disso, eles
indicam que havia um texto ou dois que traziam esse versículo. Até porque, evidentemente,
Ambrósio e Agostinho usaram textos que o continham. Entretanto, é mais provável
que eles tenham usado o mesmo texto, visto que Ambrósio exerceu grande
influência sobre o bispo de Hipona[15].
Todavia, levando em conta a
influência de Agostinho sobre a cristandade, existe grande probabilidade de que
alguns de seus discípulos tenham usado o mesmo texto. Por outro lado,
considerando que o Códice Alexandrino,[16]
um manuscrito que contém quase a Bíblia toda, mantém a informação de que um
anjo agitava as águas, e é datado aproximadamente do período em que o bispo de
Hipona viveu, é razoável concluir que naquela época já circulavam manuscritos
que conservavam esse trecho. Esse material certamente foi passado adiante
(provavelmente pelos guardiões da tradição agostiniana). Do contrário não
reapareceria em textos medievais.
João Crisóstomo (347-407) também acreditava na
legitimidade de João 5.3b-4. Em um de seus sermões sobre o evangelho de João,
referindo-se ao sentido da narrativa da cura do paralítico, ele destaca que “um
anjo desceu e agitou a água”,[17]
tornando-a um meio de cura para que os judeus aprendessem que o Senhor dos
anjos poderia realizar um milagre ainda maior: a cura da alma. Similarmente,
Cirilo de Alexandria (370-444 d.C.), em seu comentário do Evangelho de João,
faz uma citação direta do versículo quatro do capítulo cinco.[18]
Tertuliano de Cartago (160-220 d.C.) é
outro exemplo patrístico de aceitação dessa narrativa. Em sua obra De
Baptismo, comentando esse texto, ele menciona que um anjo costumava agitar
as águas do tanque, e que os enfermos ficavam atentos aos movimentos dele, pois
quem descesse primeiro às águas depois que o anjo as agitasse era curado.[19]
À luz dessas evidências, não seria mais
honesto tratar a ausência do trecho nos manuscritos ﬡ e B como omissão, em
vez de apontar a presença dele em outros textos como inserção? Afinal de
contas, os códices ﬡ
e B, além de omitirem versículos, incluem livros apócrifos do Novo Testamento,
como o Pastor Hermas e a epístola de Barnabé. A inclusão desses
livros deveria, no mínimo, gerar dúvidas quanto a canonicidade do restante do
conteúdo do códice.
Contudo, Gordon Fee defende que a tese
da omissão não pode ser sustentada. Porquanto, em sua perspectiva, os
argumentos em favor da omissão não explicam satisfatoriamente por que alguém
teria omitido João 5.3b-4, tendo em vista que esse trecho lança luz sobre João
5.7.[20]
Essa argumentação, além de fazer
sentido, aponta uma das dificuldades com as quais é preciso lidar para
sustentar a canonicidade dessa passagem. Entretanto, é importante salientar
que, da mesma forma que não se pode afirmar com exatidão histórica a razão da
omissão, não é possível garantir que João 5.3b e 5.4 existiram como duas glosas[21]
independentes, como defende Fee. Até porque, há muitos manuscritos
do Novo Testamento e teólogos do período patrístico que tratam o registro como
genuíno.
Um desses textos é o
Diatessaron, uma harmonia dos evangelhos produzida no final do século II
d.C. por um cristão assírio chamado Taciano.[22]
Esse texto afirma que “o anjo, de vez em quando, descia ao tanque e movia a
água; e o primeiro que descia depois do movimento da água, tinha todas as suas
dores curadas.”[23]
O relato também aparece na Peshitta,
a versão siríaca das Escrituras, desenvolvida por volta do século II d. C.
Nessa tradução, as informações do versículo em questão são as mesmas das
versões contemporâneas que o conservam. Senão vejamos: a Peshitta diz
que “um anjo descia ao tanque de vez em quando e movia as águas, e o primeiro
que descia ao tanque depois do movimento das águas, era curado de qualquer
enfermidade que tivesse.”[24]
Exatamente os mesmos elementos que se encontram no texto da King James e nas
versões de Almeida.
Outrossim, um dos manuscritos da
coleção de textos comumente denominada Vetus Latina,[25]
o Codex Vercellensis,[26]
que data do século IV e contém todos os evangelhos, mantém João 5.3b-4. No
entanto, considerando que a Vetus Latina geralmente é datada por volta
do século II d.C.,[27]
é razoável concluir que esse códex reflete uma tradição mais próxima do cristianismo primitivo.
4 – Questões manuscritológicas
A evidência manuscritológica parece
confirmar os argumentos supramencionados. Porquanto, como demonstra Fee,[28] existem
mais de 40 escritos que ratificam a versão que mantêm João 5.3b-4 e apenas 15 não contêm esse trecho.[29] Além
disso, o autor salienta que há cinco manuscritos que mantêm somente João 5.4 e
sete que trazem apenas João 5.3b. Essa é a base sobre a qual Fee desenvolve a
tese de que a história do anjo movimentando as águas teria sido uma glosa que
circulou por meio de duas tradições independentes, uma propagando a ideia do versículo
três e a outra a do versículo quatro. Ele argumenta que essas tradições teriam
sido “unidas num estágio inicial no Ocidente”.[30]
Em
que pese a lógica argumentativa do autor, penso que a quantidade de escritos
antigos que corroboram a legitimidade do referido trecho constitui uma
indicação de que esse detalhe da narrativa foi considerado importante para a
maioria dos copistas. Sendo assim, sua ausência deveria ser considerada uma
omissão, e não ser tratada como se refletisse o texto original. Isso nos faz
voltar a uma das principais perguntas levantadas por Fee: por que alguém teria
omitido esse trecho?
Apesar
de ser possível desenvolver teorias acerca da motivação dos omitentes, não
creio que a insatisfação dos críticos diante das respostas propostas, como
sugere Fee, seja suficiente para invalidar a tese da omissão. Até porque, já
que a maioria dos redatores manteve o texto, parece mais razoável crer que a
versão da minoria tenha sofrido alterações, e não o contrário.
Todavia, o argumento de Fee não se limita à
acusação de falta de embasamento. Ele aponta também os hápax legomenon[31] que
aparecem em João 5.3b-4 como evidência de mudança de estilo redacional. Na
opinião dele, o uso do grego kínēsin (movimento, agitação) no versículo 4 indica que o trecho foi escrito
por outra pessoa. Sua conclusão se baseia no fato de que, conquanto a repetição
de palavras seja uma marca do estilo joanino, no versículo 7 emprega-se o verbo
tarássō (agitar, sacudir) para transmitir a mesma ideia de kínēsin.
Posto que essa tese tenha fundamentos filológicos
relevantes, a presença de um hápax legomenon não é, por si só, um
indicador de inautenticidade. Afinal, nada impede que um autor empregue uma
palavra ou expressão uma única vez em seu texto. Shakespeare, por exemplo, na
obra Love’s labour’s lost,[32]
na primeira cena do quinto ato, utiliza a palavra honorificabilitudinitatibus,
um termo inglês de origem latina que aparece uma única vez em todas as obras do
escritor. Seria essa ocorrência uma indicação da interferência de outra pessoa
no trabalho de Shakespeare? É óbvio que não! Ele empregou propositalmente essa
palavra.
Algo similar ocorre nos textos de Geoffrey Chaucer
(1343-1400), um importante escritor e poeta inglês. Em The Canterbury Tales,[33]
sua obra mais popular, há pelo menos dois hápax legomenon: buf,
uma interjeição onomatopaica referente ao som que alguém faz quando arrota, e nortelrye,
cujo significado é educação. Será que a presença desses hápax legomenon provaria
que Chaucer não redigiu o trecho em que eles se encontram? É claro que não. Ao
que parece, essas palavras evidenciam apenas a criatividade do autor.
Destarte, ao invés de classificar João 5.3b-4 como
espúrio, por causa dos hápax legomenon, não seria mais adequado à fé
concluir que foi a inspiração divina que conduziu o escritor sacro a utilizar
esses termos? Por que temos que assumir que palavras diferentes indicam autores
diferentes? A presença desses termos não requer que haja inautenticidade, nem
que a autoria seja posta em dúvida.
Ademais, é importante levar em conta que vários
teólogos que se destacaram na história do cristianismo entenderam que o relato
do anjo que vinha ao tanque era verdadeiro. Tomás
de Aquino, por exemplo, comentando João 5, declara que as curas no tanque
aconteciam “em virtude de um anjo que vinha a ele.”[34]
Agostinho, em seu comentário do evangelho de João,
segue a mesma linha. A respeito da água agitada, ele afirma: “Acreditem: um
anjo aparecia habitualmente para remexê-la e sua ação não deixava de indicar a
existência de um grande mistério.”[35]
Teriam esses homens, que procuraram se aprofundar
no conhecimento teológico, desconsiderado algo que fosse historicamente
evidente ou que deixasse dúvidas? Não seria razoável que ao menos fizessem um
comentário a respeito? Acredito que sim. Por isso, concluo que tratar o trecho
como espúrio seria andar na contramão da história.
5 – Descobertas arqueológicas
Antes de prosseguir com a
argumentação relativa à legitimidade de João 5.3b-4, é necessário frisar que os
cristãos não creem na inspiração das Escrituras por causa das evidências
arqueológicas. A certeza dos servos de Jesus vem daquele que os gerou de novo. O
seu relacionamento com Ele é que lhes concede uma perspectiva diferente, de
sorte que conseguem discernir bem tudo (cf. 1 Co 2.15).
Conforme afirmou o arqueólogo judeu,
Yohanan Aharoni, “quando se trata da interpretação de dados históricos ou
historiográficos, o arqueólogo sai do reino das ciências exatas, e tem de confiar
em juízos de valor e hipóteses para chegar a um quadro histórico mais
abrangente”.[36] Isto
é, embora as conclusões da arqueologia se baseiem em evidências, algumas
lacunas são preenchidas por interpretações objetivas e subjetivas.
É claro, no entanto, que isso não
elimina a relevância desse ramo do conhecimento. Até porque, alguns achados
arqueológicos ratificam informações prestadas pela Bíblia e ajudam a esclarecer
textos difíceis. Porém, o indivíduo que interpreta as evidências pode falhar. Isso
nos faz observar com cautela e suspeição algumas das conclusões da arqueologia.
Sobretudo quando se trata de algo a respeito das Escrituras.
A afirmação de que o tanque de Bethesda
era um centro de adoração pagã, é um exemplo da influência da subjetividade dos
intérpretes. Pois, conquanto os arqueólogos tenham encontrado indícios de que acontecia
um culto pagão naquele local, não parece haver dados suficientes para conectá-los
ao exato momento histórico em que Jesus curou o paralítico. Porquanto, embora
os artefatos encontrados nos arredores do tanque sejam característicos do
período romano, é possível que sua inserção tenha ocorrido após o episódio
narrado em João 5 e que tenha sido motivada pelos relatos de curas no local.
Ademais, se o local em que o paralítico
estava era um centro de adoração pagã, como argumentam os críticos, por que
João não mencionou nada? Por que os judeus, além de acusarem Jesus de profanar
o sábado, não o acusaram também de paganismo? É surpreendente que os líderes
religiosos que odiavam tanto Jesus não tenham aproveitado essa oportunidade.
Por conseguinte, creio que a
conclusão que proporciona maior harmonia bíblica e histórica é a que vincula o
paganismo de Bethesda a um momento histórico posterior ao relato de João 5. Até
porque, como ambas as propostas interpretativas se baseiam em suposições, é
mais seguro manter-se fiel à narrativa bíblica.
6 – Por
que Deus enviaria um anjo para curar no tanque de Bethesda?
É digno de nota que, à exceção de
João 5, não há registro bíblico de anjos curando enfermidades. Para alguns, esse
dado fortalece a argumentação contrária a legitimidade do relato. Pois, para
esses intérpretes, não faria sentido o Senhor mandar um anjo para curar, sabendo
que o resultado desse milagre seria uma peregrinação idólatra ao local em que
as curas aconteciam.
Esse raciocínio, apesar de fazer
sentido e revelar zelo pela integridade do caráter divino, não interpreta o
evento a partir da narrativa maior das Escrituras. Porquanto, algo semelhante
já aconteceu nas páginas do Antigo Testamento. Refiro-me à serpente de bronze
que Deus mandou Moisés confeccionar a fim de curar os israelitas que haviam
sido picados por cobras venenosas (cf. Nm 21.-4-9). Embora o Senhor tenha feito
aquilo visando à cura do seu povo, alguns anos depois, a serpente de bronze se
tornou um objeto de adoração (cf. 2 Rs 18.4).
Vale ressaltar que, de acordo com Jesus, a serpente
de bronze tinha um objetivo maior: apontar para a obra redentora realizada pelo
Filho de Deus (cf. Jo 3.14-15). Com base nisso, penso que é possível concluir
que a movimentação das águas por um anjo visava um propósito similar: destacar
que Jesus, o Redentor da humanidade, é maior que os anjos e que a criação
inanimada (representada pelas águas). De modo que, quando Ele entra em cena no
palco da história, a mediação angélica torna-se desnecessária.
Em adição, é importante mencionar
que a Bíblia diz que os anjos são “espíritos ministradores, enviados para
servir a favor daqueles que hão de herdar a salvação” (Hb 1.14) e que eles
obedecem às ordens do Todo-Poderoso (Sl 103.20; 91.11). Sendo assim, se o
Senhor os enviar para curar alguém eles o farão. Além do mais, se os anjos
podem cegar pessoas (cf. Gn 19.1-11) é perfeitamente possível que eles possam
dar vista aos cegos.
A bem da verdade, a descrença
referente ao relato em questão tem suas raízes numa concepção deísta da
realidade. Isto é, o ponto de partida é a crença de que as afirmações das
Escrituras que contrariam a razão devem ser descartadas. Isso porque Deus dotou
o homem de racionalidade para que esta fosse o crivo para definição da
realidade.
Essa visão além, de levar muitos
cristãos a descartarem textos bíblicos, incentiva a desconfiança das
Escrituras. Porque, se a Bíblia diz que um anjo agitava as águas, mas não havia
anjo nenhum, que garantia temos de que isso não acontece com outros relatos? A
mutilação do texto bíblico leva inevitavelmente a esse questionamento.
Por isso, apesar de serem defendidos
por exegetas de renome, acredito que os argumentos favoráveis à exclusão de
João 5.3b-4 ofendem a integridade das Escrituras e induzem muitos cristãos a negarem
o que está escrito e o que foi crido desde os primeiros séculos da igreja.
Conclusão
Em face dos argumentos apresentados, a legitimidade
de João 5.3b-4 se torna mais aceitável. Em vez de ser visto como uma crendice, o
relato assume sua verdadeira vocação: um testemunho da ação misericordiosa de
Deus na história. Afinal, mesmo sem ter a obrigação de curar as pessoas, o
Criador mandou um anjo para sarar doenças físicas e, em seguida, enviou o Redentor
da humanidade para curar as almas.
No entanto, antes de finalizar o pensamento, é necessário
fazer alguns apontamentos. Até porque, muitos podem ler esse texto e não se
convencerem da veracidade do episódio. Por isso, em primeiro lugar, penso que é
importante orientar os discordantes a não desconfiarem apenas de João 5.3b-4,
mas duvidarem também dos argumentos de quem prega a espuriedade do texto; porquanto,
como já foi dito, eles fragilizam as Escrituras.
Outrossim, cumpre observar que as alegações deste
artigo exprimem uma pequena parte das premissas esposadas pelos estudiosos que
se opõem ao texto crítico. Por conta disso, a fim de que o leitor possa
aprofundar-se no assunto, quero recomendar o livro “Qual o texto original do
Novo Testamento?”, escrito por Wilbur Pickering; uma obra bastante
esclarecedora.
Por último, quero lembrar que a opção pelo texto
crítico não torna alguém, necessariamente, um liberal. Existem homens piedosos
que usam esse texto. Porém, apesar de sua piedade, creio que eles estão errados
quando deixam que as decisões tomadas pelos indivíduos que classificaram os textos
como puros e espúrios guiem sua interpretação das Escrituras. Pois, ao invés de
defender e difundir as Escrituras, eles passam a enfraquecer o texto bíblico
por meio da difusão do erro.
Desejo, sinceramente, que essas palavras possam levar
alguns à reflexão e dissuadi-los desse erro. De maneira que não se engajem mais
em pregar contra as Escrituras, mas que se empenhem para “anunciar todo o
conselho de Deus” (At 20.27).
Que o Senhor nos abençoe!
Pr.
Cremilson Meirelles
[1] A
recensão crítica é uma análise que vai além do resumo de uma obra científica.
Ela envolve a descrição, a avaliação da qualidade, o sentido e a relevância da
obra, destacando seus pontos fortes e fracos. É uma compilação das ideias do
autor, podendo incluir lacunas ou falhas de informação existentes.
[2] BRUCE, F.
F. João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1987, p. 114.
[3] HENDRIKSEN,
William. O Evangelho de João. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004,
p. 254.
[4] Cf.
LIZORKIN-EYZENBERG, Eli. O tanque de Betesda como um centro de cura do deus
greco Esculápio. Disponível em:
<https://blog.israelbiblicalstudies.com/pt-br/jewish-studies/o-tanque-de-betesda-como-um-centro-de-cura-de-greco-deus-esculapio/#:~:text=O%20Tanque%20de%20Betesda%2FAscl%C3%A9pio,Ant%C3%B4nia%20(perto%20do%20tanque).>.
Acesso em: 08 nov. 2024.
[5] Uma
organização dedicada à preservação e compartilhamento de manuscritos do Novo
Testamento para fins de pesquisa acadêmica (cf. <https://www.csntm.org/>).
[6] HARRIS, W. Hall. The Gospel of
John: introduction and commentary. Richardson, TX: Biblical Studies
Press, 2001.
[7] HENGSTENBERG, Ernst Wilhelm
(1802-1869). Commentary on the Gospel of St. John. Edinburgh: T. &
T. Clark, 1865.
[8] Idem.
[9] Idem.
[10] cf. HARRIS, 2001.
[11] Cf. CLARKE, Adam. Clarke's
Commentary: John - Romans. Niagara Falls, NY: Wesleyan Heritage
Publications, 1998, p. 69.
[12] CLARKE,
1998, p. 69.
[13] MILÃO, Ambrósio de. Explicação
dos símbolos; Sobre os sacramentos; Sobre os mistérios; Sobre a penitência.
Coleção
Patrística. São Paulo: Paulus, p. 24.
E-book.
[14] AGOSTINHO, Santo. Sermão 125: a
piscina de Betesda II.
[15] Cf.
GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão, v. 2. São Paulo:
Cultura Cristã, 2004, p. 21-25.
[16] De acordo com esse
manuscrito, “um anjo do Senhor entrava de vez em quando no tanque e agitava a
água.” (Codex
Alexandrinus. E Kaine Diatheke. Novum Testamentum graece ex antiquissimo
codice alexandrino. Disponível em:
<https://archive.org/details/codexalexandrinu00woid/page/n5/mode/2up>. Acesso
em: 26 out. 2024).
[17] CHRYSOSTOM, John. Homilies on the Gospel of John. Homily
XXXVI, p. 263. Disponível em:
<https://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/0345-0407,_Iohannes_Chrysostomus,_Homilies_on_The_Gospel_Of_John,_EN.pdf>.
Acesso em: 30 out. 2024.
[18] ALEXANDRIA, Cyril of. Commentary
on John. Online Edition. Disponível em:
<https://www.bestbiblecommentaries.com/wp-content/uploads/2019/06/Gospel-of-John-.-John-Cyril.pdf>.
Acesso em: 30 out. 2024.
[19] Tertullianus – De Baptismo In:
SCHAFF, Philip (1819-1893). Ante-nicene fathers v. 3. 2019. E-book. Disponível
em: <https://www.documentacatholicaomnia.eu/03d/0160-0220,_Tertullianus,_De_Baptismo_
[Schaff],_EN.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2024.
[20] Cf. FEE,
Gordon. Exegese para quê? Rio de Janeiro: CPAD, 2019, p. 37.
[21] Glosa é um
comentário ou uma nota explicativa sobre as palavras ou o sentido de um texto.
Nesse sentido, os versículos supracitados seriam comentários incluídos
posteriormente a fim de explicar a declaração de João 5.7.
[22] Essa
obra foi abolida por Teodoreto, bispo de Cirro, na Síria, em 423, pelo fato de
Taciano ter pertencido à seita herética dos encratitas. Contudo, a qualidade de
seu trabalho foi apreciada por muitos. Inclusive, Efraim, um cristão Sírio
escreveu um comentário sobre a obra de Taciano antes que Teodoreto destruísse
todas as cópias. Isso fez com que parte do texto fosse preservada (GEISLER,
Norman L. NIX, William. Introdução Bíblica: como a Bíblia chegou até nós. São
Paulo: Editora Vida, 1997).
[23] HOGG, Hope W. The Diatessaron of
Tatian In: SCHAFF, Philip (1819-1893). Ante-nicene fathers v. 9.
Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library, 1885, p. 105. Disponível em
<https://ccel.org/home3/search?text=the+diatessaron+of+Tatian&genreID=&orderBy=Relevance>.
Acesso em: 29 out. 2024.
[24] The New Testament
translated from the Syriac Peshito version by James
Murdock, Disponível em:
<https://aramaicnewtestament.org/peshitta/murdock/gospel/john_5.htm>. Acesso
em 02 nov. 2024.
[25] Vetus
Latina é o nome dado aos textos bíblicos traduzidos para o latim antes da
tradução de Jerônimo. Esse material, entretanto, nunca existiu como um único
volume.
[26] Cf. Codex
Vercellensis. Collectanea bíblica latina, v. 3. Romae, Neo Eboraci (etc):
F. Pustet, 1914, p. 155-156. Disponível em:
<https://archive.org/details/codexvercellensi0000unse>. Acesso em 31 jan.
2025.
[27] Silva
destaca que os textos da Vetus Latina foram, inclusive, utilizados por
Tertuliano (160-220 d.C.) (cf. SILVA, Antônio Gilberto da. A Bíblia
através dos Séculos. Rio de Janeiro: CPAD, 1986).
[28] Apesar de
reconhecer a existência de muitos escritos que confirmam o texto, Fee usa outros
argumentos para enfraquecer a credibilidade do relato.
[29] Cf. FEE, 2019, p. 36.
[30] FEE, 2019, p. 37.
[31] Termo que se refere a uma palavra
ou expressão que aparece uma única vez em um determinado texto ou contexto.
[32]
Cf. SHAKESPEARE, William. Love’s labour’s lost. Disponível em:
<https://shakespearenetwork.net/works/play/loveslabours>. Acesso
em: 17 fev. 2025.
[33] The Canterbury Tales: text. The complete
works of Geoffrey Chaucer. Edited, from numerous manuscripts by the Rev. Walter
W. Skeat, M.A. Oxford: Clarendon press, 1901. Disponível
em:https://www.gutenberg.org/files/22120/22120-h/22120-h.htm>. Acesso em 17
fev. 2025.
[34] AQUINO, São Tomás de. Comentário
ao Evangelho de São João. Parte I: Capítulos 1-7. Disponível em:
<https://isidore.co/aquinas/english/John5.htm>.
[35] AGOSTINHO,
Santo. O Evangelho de São João comentado. p. 480. Disponível em:
<https://archive.org/details/santo-agostinho-o-evangelho-de-sao-joao-comentado-i_202207/page/169/mode/2up>.
Acesso em: 17 fev. 2025.
[36] AHARONI, Yohanan. The land
of the Bible: a historical geography. Philadelphia: The Westminster Press,
1979, p. 98.
Excelente texto! Que o Senhor continue usando sua vida em prol do seu reino. Me edificou muito.
ResponderExcluirAmém! Obrigado, meu irmão.
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