Pastoral redigida para o Boletim Dominical da Primeira Igreja Batista em Manoel Corrêa
Um dos textos preferidos por quem vê o
palavrão como algo apropriado aos cristãos é, certamente, Ezequiel 23.20. Pois,
nele, está registrado o discurso que contém a linguagem mais explícita acerca
da genitália. Porquanto, através de uma metáfora sexual, o próprio Deus compara
o órgão genital masculino com o de um jumento, mencionando inclusive o volume
da ejaculação: “e enamorou-se dos seus amantes, cujos membros são como membros
de jumentos e cujo fluxo é como o fluxo de cavalos” (Ezequiel 23.20).
Com base nisso, os mal-intencionados concluem
que o Todo-poderoso aprova o uso de palavras torpes. Contudo, essa conclusão
não se sustenta biblicamente; haja vista que, tal como ocorre em outros textos,
os termos usados em Ezequiel para indicar a genitália masculina são eufemismos,
e não palavras de baixo calão. Na verdade, o termo traduzido como “membro” é o
hebraico bāšār, cuja tradução literal é carne; da mesma forma, a palavra
“fluxo” traduz o substantivo hebraico zirmâ, o qual vem de uma raiz que
dá a ideia de “aguaceiro, pancada de chuva” (WOLFF, 2007, p. 60), demonstrando
que, etimologicamente, nunca houve conotação obscena; afinal, sua origem está
no fluxo intenso de águas, e não de esperma. A aplicação ao contexto sexual,
evidentemente, é resultado de uma analogia que visava à utilização de um
eufemismo.
Ora, conforme dissemos na última pastoral,
seria uma grande contradição utilizar um eufemismo e um palavrão na mesma
frase. Por conseguinte, ainda que a figura empregada seja forte e explícita,
não podemos caracterizar a linguagem como obscena. O que vemos no referido
texto é uma estratégia retórica elaborada com um duplo propósito: chocar o
auditório e externar a insatisfação divina diante das atitudes dos habitantes
do reino do sul.
Portanto, embora a linguagem usada seja
chocante, seu emprego faz todo sentido; uma vez que o problema apontado dizia
respeito à infidelidade de Israel, ou seja, às alianças políticas com outros
povos. Afinal, as divindades das nações em redor eram caracterizadas por um
forte erotismo. Por conta disso, não surpreende o fato de que a relação entre
os israelitas e os pagãos seja retratada a partir de uma metáfora sexual. Até
porque, a prostituição na antiguidade estava diretamente ligada ao paganismo.
Existiam, inclusive, na Mesopotâmia, homens e mulheres que se prostituíam por
ocasião dos cultos da fertilidade (Deuteronômio 23.17,18). Por essa razão, há
quem veja semelhança entre a natureza explícita de Ezequiel 23 e os textos de
louvor dedicados à deusa mesopotâmica Ishtar. Pois, num deles, Ishtar, ao
conhecer seu amante, Dumuzi (Tamuz), refere-se “aos próprios órgãos genitais
como ‘um campo bem irrigado’”, e pergunta: “quem o lavrará?” Diante disso,
Dumuzi se voluntaria.
Ademais, o uso da prostituição como figura do
pecado de Israel parte do princípio que, ao buscar a ajuda de outros povos, os
israelitas quebraram seus votos matrimoniais com o Senhor, fiando-se na
proteção do Egito, da Assíria, e da Babilônia, ao invés de confiar somente em
Deus. Entretanto, ainda que o texto aluda à relação sexual, as práticas
mencionadas são claramente reprovadas. Isto é, não se trata de uma aprovação da
promiscuidade, e muito menos dos palavrões. Afinal de contas, se a
promiscuidade é reprovada, porque referir-se a ela de maneira frívola seria
aprovado?
Assim, levando em conta o objetivo da
parábola de Ezequiel 23, a saber, denunciar o pecado de Israel, não há como
lançar mão desse texto para justificar um vocabulário obsceno. Fazê-lo, seria o
mesmo que desprezar o contexto do discurso divino e todo o ensino das
Escrituras sobre palavras torpes. Até porque, conquanto reconheçamos que o
conteúdo é de natureza sexual, reconhecemos também que nenhum palavrão foi
utilizado. Pois, da mesma forma que é possível encontrar esse texto, nas mais
variadas versões da Bíblia, sem nenhuma palavra de baixo calão, era igualmente
possível redigi-lo (ou proferi-lo) sem usar termos chulos.
Continua...
Pr. Cremilson
Meirelles
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIBLIA. Português. Bíblia de estudo
arqueológica NVI. Equipe de tradução: Claiton André Kunz, Eliseu
Manoel dos Santos e Marcelo Smargiasse. São Paulo: Editora Vida, 2013.
BLOCK, Daniel L. Comentários do Antigo
Testamento: Ezequiel. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo
Testamento. São Paulo: Hagnos, 2007.
O CRENTE PODE FALAR PALAVRÃO? - PARTE V
Reviewed by Pr. Cremilson Meirelles
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11:41
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Muito boa a pastora, amigo.
ResponderExcluirObrigado. Em breve redigirei a sequência.
ExcluirRefiro-me à parte VII.
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