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A INFERTILIDADE NO CONTEXTO DA FÉ CRISTÃ – ÚLTIMA PARTE

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4 - A raiz do problema

Por certo, esta é a parte mais delicada da nossa abordagem. Porquanto, defenderemos a premissa de que o problema de muitos inférteis não é uma doença do corpo, mas sim uma enfermidade da alma. Isto é, uma desarmonia no relacionamento com Deus. Porquanto, como já foi dito, o sofrimento resultante da luta contra a infertilidade, além de afetar o relacionamento conjugal, interfere bastante na relação do indivíduo com Deus. Reconhecendo essa realidade, Julie Zimmerman, com base em sua experiência, comenta que para muitos “o aspecto mais difícil da infertilidade é como ela nos afeta espiritualmente”[1]. De sorte que o mesmo Deus que estava presente e dirigia o planejamento familiar, aos olhos de quem encara a incapacidade de gerar filhos, parece ausente. Como resultado disso, indagações do tipo “onde está Deus? Estamos sendo punidos por algo que fizemos? Deus não pode ouvir nossos apelos desesperados? Por que devemos sofrer assim?[2] Se tornam comuns.

 Entretanto, há duas perguntas essenciais por detrás desses questionamentos que indicam uma compreensão defeituosa do caráter divino, a saber: “Deus, o Senhor se importa?”[3] e “Deus, o Senhor tem o controle?”[4] Sobre elas, Kellemen assevera: “todo problema da alma inclui uma resposta distorcida, desequilibrada a essas duas perguntas sobre o caráter infinitamente perfeito de Deus”[5]. Com base nessa premissa, o referido autor conclui que a vitória ou derrota na batalha pela mente e pelo coração depende da imagem que se tem de Deus. Essa asserção está em sintonia com o que Pierre e Reju dizem sobre o propósito humano. Visto que, na concepção deles, a humanidade foi criada para manifestar o caráter do Criador em seus pensamentos e atitudes[6]. Logo, uma compreensão deturpada desse caráter certamente comprometerá a conduta e inclinará o coração noutra direção, gerando uma adoração deficiente.

Ponderando esses pressupostos, fica patente que o problema humano é fundamentalmente uma questão de desfocamento da adoração. Essa desarmonia não é resultado de influências externas, mas da natureza caída do próprio homem. Como Jesus ensinou, “de dentro, do coração dos homens, é que procedem os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura” (Mc 7.21,22). Ou seja, “as ações, palavras e atitudes de uma pessoa não nascem do seu ambiente ou contexto, mas do seu coração”[7].

Sendo o coração a fonte do problema, temos de reconhecer que só Deus pode resolvê-lo. Haja vista que “o homem vê o exterior, porém o SENHOR, o coração”. Ou seja, Deus é o único que pode perscrutar o interior de Suas criaturas (Sl 139.1-4; Jr 17.10; At 15.8; Rm 8.27). Só Ele sabe exatamente o que motiva as ações humanas. Por isso, em Jeremias 17.10, o Todo-poderoso declara: “Eu, o SENHOR, esquadrinho o coração, eu provo os pensamentos; e isto para dar a cada um segundo o seu proceder, segundo o fruto das suas ações”. O homem, por outro lado, por causa do pecado, não consegue enxergar seu próprio coração. Essa cegueira pessoal, como explica Paul Tripp[8], dificulta bastante o aconselhamento bíblico. Afinal, expor um coração que se oculta e é “desesperadamente corrupto” (Jr 17.9) é uma tarefa árdua que não pode ser realizada por meio da sabedoria humana. É necessário lançar mão dos recursos que o próprio Deus outorgou: a oração e a Escritura Sagrada.

Levando em conta esses elementos, Pierre e Reju[9] propõem uma estrutura metodológica para o aconselhamento bíblico, na qual, após se inteirar do problema, o conselheiro deve considerar as respostas do coração do aconselhado, a fim de falar a verdade bíblica em amor. Para tanto, além de manejar bem as Escrituras Sagradas, o conselheiro deve dedicar-se à oração. Afinal, é Deus quem o capacitará e transformará o coração do aconselhado. De forma que o objetivo principal do conselheiro é ser instrumento “do Messias para abrir olhos que estão cegos há tanto tempo”[10], ajudando “o aconselhado a ver a si mesmo no espelho da Palavra de Deus”[11]. Porque ela “é o único instrumento que pode sondar as profundezas do coração humano e discernir o âmago de seus problemas”[12]. Corroborando esse entendimento, Jay Adams assevera que “qualquer aconselhamento que não seja baseado no entendimento de que é somente o poder de Deus que transforma o consulente, se constitui essencialmente não-cristão”[13].

Havendo lançado essas bases, no tópico seguinte trataremos de algumas perguntas que podem ajudar na sondagem bíblica do coração e trazer à tona a fonte do sofrimento. Vale frisar, porém, que não temos a pretensão de esgotar o assunto. O propósito, na verdade, é promover uma reflexão sobre a relação entre o sofrimento dos inférteis e inclinação pecaminosa do homem.

5 – Perguntas para expor o coração

O indivíduo que lida com o sofrimento tende a estar tão focado em sua história pessoal que a utiliza como lente interpretativa para toda a realidade. E, como ressalta Paul Tripp, “a pessoa que interpreta a vida pelas lentes de sua experiência pessoal faz o mesmo com a Palavra de Deus. A experiência pessoal é o que controla sua cosmovisão, e não as Escrituras”[14]. Por conseguinte, o efeito é confundido com a causa e vice-versa[15]. À vista disso, é preciso identificar em sua história individual as lentes que guiam seu entendimento a respeito do Ser divino e, consequentemente, sua relação com Ele. Alguns casos irão requerer maior esforço exploratório. Mas, de um modo geral, o princípio é o mesmo: fazer perguntas que conduzam às questões do coração[16]. Pois, só assim será possível entender as motivações interiores e expor o sistema de crenças que domina sua interpretação do que está acontecendo, bem como aquilo que controla suas ações. Ou seja, é preciso saber como o coração do aconselhado está respondendo às circunstâncias, às outras pessoas, a si mesmo e a Deus[17].

A fim de subsidiar essa etapa do aconselhamento, David Powlison elaborou perguntas que auxiliam o conselheiro na tarefa de expor o coração. A primeira delas, e certamente a mais profunda, se baseia no primeiro grande mandamento: “O que você ama? O que você odeia?”. Conquanto essa indagação possa parecer um tanto quanto simplória, ela toca no cerne da questão. Somos chamados para amar a Deus e amar o próximo (Mt 22.35-40). “O amor é para a alma o que a respiração é para os pulmões e o alimento, para o estômago”[18]. Contudo, nem sempre aqueles que afirmam amar o Criador agem em consonância com sua declaração. Às vezes, como diz Powlison, o indivíduo “vive como se o dinheiro, a apro­vação de outros, o sermão bem-sucedido, seu diploma ou uma prova, a saúde perfeita, o fato de evitar conflitos ou conseguir aquilo que você quer ou...importasse mais do que amar a Deus e confiar nEle (sic)”[19]. Um exemplo claro dessa dissonância relacional aparece num relato de John Piper:

 

uma mulher veio até mim depois do culto, chorando de angústia pelos problemas de sua vida. Em um ponto de nossa conversa, perguntei a ela: Se você estivesse em um lugar onde tivesse sua família, saúde perfeita, todas as suas comidas favoritas e todas as suas recreações favoritas, e você não tivesse que se sentir culpada, você ainda iria querer estar lá se Jesus não estivesse? Ela gritou: Sim![20]

 

               Essa resposta, embora essencialmente contraditória, expõe a raiz do problema: Cristo não ocupa lugar central no coração. Outra coisa compete com o Deus que a pessoa professa. De maneira que estar com Ele não é o maior desejo. Comentando essa postura, em outra obra, Piper ressalta que, para muitos, Cristo é apenas útil. Por isso, posto que aleguem crer n’Ele, ao invés de servi-Lo, O usam para alcançar o que realmente querem[21].

               É provável que no contexto da infertilidade existam cristãos com esse tipo de pensamento. Isto é, casais ou indivíduos que transformaram o filho não gerado em um objeto de adoração e dependência, e passaram a crer que a completude só pode ser alcançada mediante o exercício da maternidade/paternidade. Uma visão idólatra que faz com que uma dádiva divina se torne o alvo supremo e coloca o Todo-poderoso na posição de mero atendedor de desejos. 

                A possibilidade de posturas como essa, leva à pergunta seguinte no modelo elaborado por Powlison: “O que você quer, deseja, anseia, cobiça? A que desejos você obedece?” Esse questionamento pode trazer à luz aquilo que realmente governa o indivíduo. Sobre isso, é importante mencionar que, às vezes, o problema está ligado ao temor de homens[22]. De sorte que o desejo de atender a expectativa de outras pessoas governa o coração. Pois, como destacam Farinati, Rigoni e Müller, a busca por um filho pode ter motivações variadas que incluem a esperança de salvar o casamento e o anseio por “atender à pressão cultural e familiar”[23].

               Nesse ponto, cabe indagar: “A quem você precisa agradar? Quais as opiniões que contam a seu respeito? Você deseja a aprovação e teme a rejeição de quem? Qual o sistema de valores pelo qual você se mede? Aos olhos de quem você está vivendo?”[24] Essas perguntas podem auxiliar bastante o aconselhado na percepção de sua idolatria social. Porquanto, como explica Powlison, os ídolos sociais se manifestam de diversas formas: “aceitação ou rejeição, pertencer ou ficar excluído do grupo, aprovação ou crítica, afeição ou hostilidade, adoração ou desprezo, intimidade ou alienação, ser entendido ou ridicularizado”[25].

Sendo o homem essencialmente um adorador, uma visão corrompida da divindade, como aquele que o puniu com a infertilidade ou mesmo como quem tem prazer no seu sofrimento, o direcionará a inúmeros deuses rivais. Por essa razão, “os pastores devem pensar no aconselhamento não primariamente como uma tentativa de corrigir problemas, mas como uma tentativa de reorientar a adoração, de coisas criadas para o Criador, por meio do evangelho de Jesus Cristo”[26].

               Não obstante, é preciso ter em mente que não existe um questionário fixo e aplicável a todas as pessoas que se encontram nessa condição. As perguntas acima não esgotam os questionamentos possíveis e necessários. Haja vista que cada indivíduo possui uma história pessoal que precisa ser considerada por ocasião do aconselhamento. Somente assim o conselheiro poderá se engajar na tarefa de expor o coração do aconselhado e considerar suas respostas.

CONCLUSÃO

Lidar com o sofrimento não é uma tarefa fácil. Principalmente, quando se trata da incapacidade de gerar filhos. Pois, a dor dos inférteis vem acompanhada de dúvidas e incertezas vinculadas à fé, que podem repercutir negativamente sobre suas relações familiares, eclesiásticas e sua prática devocional. Soma-se a isso o fato de que existe certa insensibilidade, por parte das igrejas, no que diz respeito ao sofrimento dos casais que lutam com a infertilidade, aumentando assim a fragilidade emocional que os caracteriza. 

Felizmente, a Bíblia tem os recursos necessários para acalentar os corações e dar uma esperança mais palpável, por meio da reorientação da cosmovisão, operada pelo Espírito Santo. Os relatos bíblicos referentes à reversão da esterilidade evidenciam que os estéreis são alvo do cuidado divino. É Ele quem “faz que a mulher estéril viva em família e seja alegre mãe de filhos” (Salmos 113.9). Ou seja, Deus se importa com o sofrimento dos casais infecundos. A infertilidade, como foi demonstrado, não é um juízo divino indiscriminado, mas sim uma das consequências da queda.

De posse dessas certezas, como vimos ao longo do texto, o conselheiro precisa se inteirar do histórico pessoal de cada casal, considerando sua percepção do problema e a maneira como seu coração responde ante esse desafio. O método proposto por Pierre e Reju pode ajudar bastante na estruturação do processo de aconselhamento, uma vez que contempla esses elementos. Contudo, nenhum método pode preencher todas as lacunas e tampouco operar mudanças no coração. Isso só o Espírito Santo pode realizar. Por isso, a oração é um componente fundamental de qualquer aconselhamento que se denomine cristão. Até porque, o Filho de Deus ensinou que sem Ele nada podemos fazer (João 15.5). Somente na dependência de Cristo é possível obter resultados que glorifiquem o Senhor.

 Pr. Cremilson Meirelles


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[1] ZIMMERMAN, Julie Irwin. A Spiritual Companion to Infertility. Illinois: ACTA Publications, 2009. Formato Kindle, Posição 32 (tradução nossa).

[2] Op. cit., loc. cit. (tradução nossa).

[3] KELLEMEN, Robert W. Aconselhamento segundo o evangelho: como Cristo transforma vidas. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 78.

[4] Op. cit., loc. cit.

[5] Op. cit., loc. cit.

[6] PIERRE, Jeremy; REJU, Deepak. O pastor e o aconselhamento: um guia básico para pastoreio de membros em necessidade. São José dos Campos, SP: Fiel, 2015, p. 29.

[7] BABLER, John; ELLEN, Nicolas. Fundamentos teológicos do aconselhamento bíblico e suas aplicações práticas. São Paulo: NUTRA, 2017, p. 101.

[8] TRIPP, Paul. Abrindo olhos vedados: outra visão da coleta de dados. In: SBPV. Coletânea de aconselhamento bíblico. Volume 2.  Atibaia, p. 28.

[9] Os autores propõem uma abordagem baseada em três ações: ouvir o problema, considerar as respostas do coração e falar a verdade em amor (Cf. PIERRE; REJU, 2015, p. 68).

[10] Op. cit., loc. cit.

[11] Op. cit., p.29.

[12] BABLER; ELLEN, 2017, p. 101.

[13] ADAMS, Jay. Teologia do aconselhamento cristão. Eusébio, CE: Editora Peregrino, 2016, p. 95.

[14] TRIPP, Paul. Coleta de Dados: como o conselheiro contribui para o processo. In: SBPV. Coletânea de aconselhamento bíblico. Volume 7.  Atibaia, p. 38

[15] Jay Adams, no clássico do aconselhamento bíblico contemporâneo, “O conselheiro capaz”, trata essa realidade como sendo três dimensões do problema, as quais se dividem em problemas de apresentação (uso do efeito como se fosse causa), problemas de realização (apresentação da causa como efeito) e problemas de pré-condicionamento (problema apresentado como efeito, quando na verdade é a causa subjacente). Adams ressalta ainda que “no aconselhamento, deve-se fazer distinção entre os três problemas, e muitas vezes eles devem ser considerados em separado (ADAMS, Jay. Conselheiro capaz. São Paulo: Editora Fiel, 1977, p. 146).

[16] Cf. PIERRE; REJU, 2015, p. 85.

[17] Cf. PIERRE; REJU, 2015, p. 68.

[18] KELLEMEN, 2018, p. 112.

[19] POWLISON, David. Perguntas Raio-X: descobrindo os porquês e os motivos do comportamento humano. In: SBPV. Coletânea de aconselhamento bíblico. Volume 1. (p. 3-13), Atibaia, p. 4.

[20] PIPER, John. Defining biblical counseling. In: MACDONALD, James et al. Christ-centered biblical counseling. (tradução nossa). Eugene, Oregon: Harvest House Publishers, 2013, p. 28.

[21] PIPER, John. Alegrem-se os povos. Traduzido por Rubens Castilho e Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 213.

[22] “O receio do homem lhe arma laços” (Pv 29.25a).

[23] FARINATI, Débora Marcondes; RIGONI, Maisa dos Santos; MÜLLER, Marisa Campio. Infertilidade: um novo campo da Psicologia da saúde. Estudos de Psicologia, Campinas, 23(4), 433-439, outubro - dezembro 2006, p. 436.

[24] POWLISON, David. Perguntas Raio-X: descobrindo os porquês e os motivos do comportamento humano. In: SBPV. Coletânea de aconselhamento bíblico. Volume 1. (p. 3-13), Atibaia, p. 8.

[25] Op. cit., loc. cit.

[26] PIERRE; REJU, 2015, p. 101.

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