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A BÍBLIA CONDENA A UNIÃO ESTÁVEL?

 

Essa pergunta foi feita durante muito tempo e em muitas ocasiões. Contudo, gradativamente, a discussão em torno dessa questão foi sendo relegada a segundo plano. Aparentemente, esse arrefecimento do debate ocorreu porque líderes evangélicos de grande influência passaram a defender posicionamentos mais flexíveis e a facilitar o recebimento de casais nessa condição no rol de membros de suas igrejas. Provavelmente, por conta dessa abertura, o número de evangélicos que vivem em união estável se multiplicou, mostrando-nos que decisões que envolvem questões doutrinárias têm um alcance muito maior que os limites da igreja local. Por essa razão, é imperioso que toda reflexão que desemboque numa teologia prática seja, acima de tudo, norteada pelas Escrituras, e não por experiências pessoais ou pelas necessidades dos indivíduos.

Pensando assim, proponho que reflitamos sobre a questão exposta no título, levando em conta o testemunho bíblico e histórico a respeito do assunto. O primeiro passo para essa reflexão é verificar qual o conceito bíblico de casamento. Para tanto, é necessário ler o que o Filho de Deus disse acerca do assunto:

 

Então, chegaram ao pé dele os fariseus, tentando-o e dizendo-lhe: é lícito ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo? Ele, porém, respondendo, disse-lhes: não tendes lido que, no princípio, o Criador os fez macho e fêmea e disse: portanto, deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher, e serão dois numa só carne? Assim não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não separe o homem (Mateus 19.4-6).

 

              No texto acima, Jesus, respondendo ao questionamento dos fariseus, evoca a narrativa da criação e destaca que o padrão que Deus estabeleceu para o casamento foi expresso nos dois primeiros capítulos da Bíblia. E, na perspectiva do Verbo Encarnado, ali estão os princípios que devem nortear qualquer discurso acerca da vida conjugal. Um deles é apontado por Ele em Sua resposta: “o que Deus ajuntou não separe o homem” (Mt 19.6). Ou seja, de acordo com Jesus, a indissolubilidade do casamento pode ser facilmente depreendida dos textos que Ele cita (Gênesis 1.27 e 2.24). Outrossim, tanto a monogamia quanto a heterossexualidade são princípios evidentemente presentes nesses versículos.

            Não obstante, Jesus não tinha o propósito de detalhar, em Mateus 19, todos os elementos que caracterizam a união de um homem e uma mulher. Entretanto, algo que fica subentendido nos versículos que Ele menciona é que o casamento, além de ser monogâmico, indissolúvel e heterossexual, é também transcultural. Afinal, sua instituição ocorreu antes da queda do homem; quando tudo funcionava em harmonia com o propósito original estabelecido por Deus. O primeiro casal não tinha gerado filhos ainda. Por conseguinte, não existiam nações e etnias diferentes. Aliás, não havia ninguém além de Adão e Eva. De modo que o que Deus disse a eles foi dito a toda humanidade. Isto é, o casamento é uma instituição divina para todo ser humano, e não só para os que creem em Jesus Cristo. Portanto, tem eficácia erga omnes[1]. Sendo assim, quando um homem se une a uma mulher, em qualquer lugar do mundo, em qualquer cultura, todas as demais mulheres lhe estão vedadas, e, da mesma forma, sua esposa não pode se relacionar com nenhum outro homem. No entanto, para que isso seja efetivo, é necessário que a união seja pública. Sem a publicidade, pode acontecer o mesmo que houve com Abraão e Isaque, os quais correram o risco de perderem suas esposas (Gênesis 20.1-18 e 26.6-11).

            A publicidade do enlace matrimonial está implicada no “deixar pai e mãe” (Gênesis 2.24). Pois, ao deixar, geograficamente, uma unidade familiar para formar outra, todos em redor passam a reconhecer essa entidade como uma família, independente da parentela de origem. Semelhantemente, esse “deixar pai e mãe” indica que o casamento tem, necessariamente, um ponto inicial identificável. Ademais, a união biblicamente reconhecida inicia-se com uma formalidade. Isso fica patente em Malaquias 2.14, onde Deus declara que o matrimônio é uma aliança da qual Ele é testemunha. Curiosamente, o termo traduzido como aliança é o hebraico bᵉrîth; a mesma palavra empregada por ocasião do pacto firmado entre Deus e Israel (Êxodo 19.5). Isso indica que, tal como a aliança entre Deus e Seu povo, o casamento é iniciado por um ato formal. Em adição, vale sublinhar que Andreas Köstenberger[2] atesta que, até meados do século XIV, o termo mais frequentemente usado pelos cristãos para referir-se ao casamento era o latim foedus (aliança); o que confirma a argumentação acima.

            Diante disso, surge uma pergunta: qual o instrumento para efetivação dessa formalidade? Em nossa cultura é o registro cartorário. Mas será que foi isso mesmo que Deus instituiu? Bem, a Bíblia não relata a instituição de um documento escrito de casamento, mas estabelece uma escritura pública de divórcio: “Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, então, será que, se não achar graça em seus olhos, por nela achar coisa feia, ele lhe fará escrito de repúdio[3], e lhe dará na sua mão, e a despedirá da sua casa” (Deuteronômio 24.1). Ora, se havia esse tipo de documento para formalizar o divórcio, conforme observa Roland de Vaux, “seria, pois, estranho se naquele tempo não houvesse contratos de casamento”[4]. É claro que alguém pode objetar, dizendo que uma coisa não requer a outra. Porém, existem evidências históricas e arqueológicas de que escrituras públicas de casamento eram comuns desde os tempos do Antigo Testamento. O livro de Tobias[5], por exemplo, relata um episódio em que um contrato de casamento é redigido pelo pai da moça que Tobias recebe como esposa (Tb 7.13,14). Além disso, “há muitos contratos de casamento procedentes da colônia judaica de Elefantina, que datam do século V antes de nossa era”[6].

            É importante frisar que naquele tempo não havia a distinção contemporânea entre união civil e religiosa. Todos os casamentos eram tanto civis quanto religiosos. Aliás, cabe salientar que, etimologicamente, o vocábulo “civil” está relacionado àquilo que tem a ver com a vida pública do cidadão[7]. Sob essa ótica, as duas modalidades podem ser consideradas civis. Inclusive, a união hoje conhecida como civil só surgiu no século XIX. Até então, o casamento socialmente reconhecido era o religioso. E em cada cultura havia um cerimonial específico que marcava o início da conjugalidade.

            À luz dessa realidade, nossa conclusão é que cada sociedade se organiza de uma forma específica no que tange à realização do casamento, o qual será válido para todos, desde que cumpra o requisito da publicidade e inclua uma formalidade para marcar a passagem da solteirice para o matrimônio. Contudo, para que se adeque ao padrão bíblico, isso não basta. A união tem de ser monogâmica, heterossexual e precisa incluir um compromisso com sua indissolubilidade.

            Quando a união estável é submetida a esse crivo, sua inadequação fica patente. Afinal, ela nasce pura e simplesmente da vontade dos interessados. Não há nenhum ato formal que marque o seu começo. Além disso, seu princípio geralmente é velado. Isto é, a publicidade só vem depois que a convivência já está estabelecida. E, para piorar, de acordo com a lei, para que seja caracterizada a união estável não é necessário nem mesmo residir no mesmo domicílio. Por essa e outras peculiaridades, a união estável não altera o estado civil. Ou seja, união estável não é casamento.

Essa verdade era reconhecida desde os tempos de Jesus. Isso é evidente no seu diálogo com a mulher samaritana. Haja vista que, após a solicitação de que a mulher chamasse seu marido e a resposta que ela deu, Jesus trouxe à tona sua conduta pecaminosa: “Disseste bem: Não tenho marido, porque tiveste cinco maridos e o que agora tens não é teu marido; isso disseste com verdade” (João 4.17,18). De acordo com F. F. Bruce essa asserção indica que “ela estava vivendo com um homem com quem não estava regularmente casada”[8]. E, embora alguns argumentem que se tratava de um indivíduo casado com outra mulher, mas que se encontrava com ela ocasionalmente, o texto deixa claro que o homem mencionado por Jesus, conquanto não fosse seu marido, era alguém que ela “tinha” (“o que agora tens”). Essa afirmação é bastante reveladora acerca da compreensão divina das relações conjugais, visto que a palavra traduzida como “tens”, em João 4.18, é o verbo grego échō[9], que dá a ideia de “possessão e relacionamento”[10]; o mesmo termo empregado por Jesus na referência aos relacionamentos anteriores: “porque tiveste (échō) cinco maridos”. Isso revela que, na concepção do Filho de Deus, havia entre ela e aquele homem a mesma intimidade e convivência que caracterizava as outras uniões. Mesmo assim, Ele assevera: “não é teu marido”. Isto é, havia alguém convivendo com ela como se fosse seu marido, sem ser de fato. Pelo menos é isso que o uso do verbo échō parece indicar. Porquanto, na frase, échō está ligado à expressão anterior (“tiveste cinco maridos”) por meio do pronome relativo masculino singular hós[11], cuja tradução, nesse contexto pode ser “o qual”, “o que”, demonstrando que quem está com ela usufrui dos privilégios do matrimônio. No entanto, por alguma irregularidade, sua relação não podia ser caracterizada como casamento.

Que irregularidade seria essa? O mais provável é que se trate da ausência dos aspectos essenciais inferidos de Gênesis 2.24, quais sejam, publicidade e uma formalidade para marcar o início da união. John Macarthur, ao comentar essa passagem, afirma: “biblicamente, o casamento está sempre restrito a uma aliança pública, formal, oficial e reconhecida”[12]. Em suma, a mulher estava em uma união estável com um homem e Jesus considera sua condição pecaminosa. Obviamente, isso estabelece um precedente para a postura da igreja local e enquadra esse tipo de relação como fornicação[13].

A despeito de tudo o que foi dito, ainda há muitos cristãos que optam pela união estável em vez do casamento. Estes, em sua maioria, parecem não se importar com o caráter pecaminoso dessa prática. Alguns, inclusive, buscam esse expediente com a intenção de fraudar o Estado, mantendo uma pensão à qual não fazem mais jus[14]. E o pior: usam esse argumento para colocar a liderança da igreja “contra a parede”, no tocante ao recebimento no rol de membros, e justificar sua condição. Ou seja, cometem um pecado para viabilizar outros. Por isso, é comum que procurem igrejas que os inclua no rol de membros sem a necessidade de regularizar a situação.

Quanto a essa questão da possibilidade da perda de uma pensão, creio que cabe a orientação do puritano Jeremiah Burroughs (1600-1646), no livro O mal dos males: “qualquer aflição deve ser escolhida em vez de qualquer pecado; pois há mais mal em qualquer pecado, o menor que seja, do que na maior aflição”[15]. Em outras palavras, entre o menor pecado e a maior aflição, escolha a maior aflição. O pecado não deve ser uma opção para o servo de Deus. Querer permanecer na iniquidade por causa de um benefício financeiro é evidência de idolatria. E no altar do seu deus o indivíduo sacrifica tudo, inclusive sua obediência a Deus.

Destarte, considerando que o batismo é o primeiro ato público de obediência e que a união estável é uma condição pública de desobediência, penso que pessoas amasiadas não devem ser batizadas. É claro que existem circunstâncias em que o casamento só não ocorre porque o companheiro descrente não aceita, ainda que existam filhos e uma união de longa data. Isso, entretanto, não muda o fato de que a condição é irregular. Além disso, como a salvação é pela graça por meio da fé (Efésios 2.8,9), e não através do batismo, é possível que um indivíduo vá para o céu sem ser batizado, como aconteceu com o “ladrão da cruz” (Lucas 23.39-43).     

Por conseguinte, se por um lado a pessoa não pode abandonar o pecado por causa da história construída ao lado de alguém que recusa se casar, a igreja não pode compactuar com aquilo que o Deus encarnado se recusou a aceitar. A solução nesse caso é a oração e a pregação do evangelho, visando a conversão do companheiro que obstinadamente insiste em manter a união estável, crendo que o Todo-poderoso pode operar e transformar o seu coração.

Afinal de contas, as ordenanças foram dadas não somente para edificação ou benefício individual, mas coletivo. Porque, quando um indivíduo é batizado biblicamente, toda a comunidade é edificada com o ensino bíblico. Semelhantemente, quando a Ceia do Senhor é celebrada até o não crente pode ser alcançado. Porquanto, há o anúncio da obra redentora. Haja vista que fala-se da morte (cruz) até que Ele venha (ressurreição, ascensão e segunda vinda). Portanto, creio que seja mais adequado manter uma postura politicamente incorreta, mas biblicamente alinhada.

Pr. Cremilson Meirelles



[1] A eficácia erga omnes é uma característica geral das normas jurídicas: segundo a qual se estabelece que qualquer pessoa ou ente que se encontre enquadrado na conjectura de incidência deverá observar aquele regramento (FRÓES, Tagore. Eficácia erga omnes x Efeito vinculante: há diferença? Disponível em <https://tagfroes.jusbrasil.com.br/artigos/189149130/eficacia-erga-omnes-x-efeito-vinculante-ha-diferenca>. Acesso em 19 de outubro de 2021.

[2] KÖSTENBERGER, Andreas J. Deus, casamento e família: reconstruindo o fundamento bíblico. Traduzido por Susana Klassen. São Paulo: Vida Nova, 2015.

[3] Para uma discussão mais fundamentada sobre a relação sinonímica entre repúdio e divórcio, leia o artigo “Divórcio e repúdio são coisas diferentes?” disponível em <https://pastorcremilson.blogspot.com/2019/02/divorcio-e-repudio-sao-coisas-diferentes.html>.

[4] VAUX, R. de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004, p. 56.

[5] Tobias é um livro exclusivo da Bíblia Católica. Os protestantes/evangélicos e judeus não o reconhecem como canônico.

[6] VAUX, R. de, 2004, loc. cit.

[7] Civil “vem do Latim CIVILIS, relativo a um cidadão, à vida pública”. Informação disponível em <https://origemdapalavra.com.br/pergunta/civilizacao-e-civil/>

[8] BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 101.

[9] GOMES, P. S; OLIVETTI, O. O Novo Testamento Interlinear Analítico Grego – Português. Texto Majoritário com Aparato Crítico. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 365.

[10] COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Trad. Gordon Chown. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2000, p. 375, v. 1.

[11] REGA, Lourenço Stelio Noções do grego bíblico: gramática fundamental. São Paulo: Vida Nova, 2004, p. 122.

[12] MACARTHUR, John. João: Jesus - 0 Verbo, Messias, Filho de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 26.

[13] “Relações sexuais ilícitas” (KASCHEL, Werner; ZIMMER, Rudi. Dicionário da Bíblia Almeida. 2 ed. Barueri – SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993, p. 74).

[14] Vale ressaltar que há a possibilidade de casar-se novamente após a viuvez e não perder a pensão. Porquanto o STJ entende que essa perda só ocorreria se houvesse um incremento na vida financeira. Isto é, se o indivíduo com quem uma viúva contrair matrimônio não tiver uma renda formal a pensão é mantida, tal como descrito abaixo:

“PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE DE CÔNJUGE. NOVO CASAMENTO.

CANCELAMENTO INDEVIDO. MODIFICAÇÃO DA CONDIÇÃO FINANCEIRA NÃO DEMONSTRADA. SÚMULA N. 170/TFR.

1. O novo matrimônio não constitui causa ou perda do direito integrante do patrimônio da pensionista. Precedente.

2. A ausência de comprovação da melhoria financeira da viúva de ex-segurado, com o novo casamento, obsta o cancelamento da pensão por morte até então percebida. Inteligência da Súmula 170 do extinto TFR.

5. Agravo regimental improvido.”

(AgRg no Ag 1425313/PI, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 17/04/2012, DJe 09/05/2012)

[15] BURROUGHS, Jeremiah. The Evil of the Evils: or The Exceeding Sinfullness of Sin. Morgan, PA: Soli Deo Gloria Publications, 1992, p. 3.

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