1.
Introdução
Curiosamente,
muitos entendem que antes de cumprir o mandamento de amar o próximo é
necessário amar a si mesmo. Afinal de contas, conforme costumam ressaltar, existem
pessoas que não se amam. Ou seja, de acordo com essa interpretação, ao proferir
o segundo grande mandamento, Jesus teria ordenado duas ações: amar a si mesmo e
amar o próximo. Contudo, embora essa tese seja eficaz para afagar o ego, não
parece estar alinhada com uma hermenêutica sadia. Essa crítica, entretanto,
geralmente não é bem recebida; uma vez que, em razão de sua popularidade, a
ideia em questão se tornou praticamente um axioma no mundo evangélico.
Por
essa razão, a argumentação contrária tem de ser construída cuidadosamente a
partir de uma exegese fiel às Escrituras. Porque, ainda que a maioria dos
evangélicos declarem crer na Bíblia como Palavra de Deus inerrante, inspirada e
autoritativa, muitos, sem perceber, estão sendo conduzidos a ler o texto
bíblico através de lentes contaminadas por pressupostos ateístas. De sorte que
suas conclusões, mesmo que pareçam fazer sentido, estão na contramão do que
Deus revelou.
Por conseguinte, é possível que,
mesmo depois de submeter esse pensamento ao crivo das Escrituras, ainda existam
indivíduos que se mantenham fiéis a ele. Assim, considerando essa
possibilidade, quero convidá-lo a despojar-se de suas pressuposições e analisar
o que a Bíblia diz sobre o assunto.
2.
Dois ou três mandamentos?
Antes de principiar a análise, é
importante salientar que essa interpretação tem implicações que a fragilizam. A
mais evidente é o fato de contradizer a afirmação de Jesus de que toda a Lei e
os Profetas dependem de dois mandamentos (Mateus 22.40). Pois, se, ao invés de
dois, entendermos que se trata de três mandamentos (amar a Deus, a si mesmo e
ao próximo), teremos de admitir que o Filho de Deus se equivocou. Outrossim,
será necessário reconhecer que Ele estava errado também ao dizer que aquele que
quiser segui-lo deve negar a si mesmo (Lucas 9.23). Até porque, negar a si
mesmo seria uma atitude contrária ao amor-próprio. E, seguindo essa lógica, tal
postura inviabilizaria o amor ao próximo. É... parece mesmo haver algo errado
com essa interpretação. Mas como resolver esse dilema?
Conquanto a ideia de três
mandamentos seja bastante popular atualmente, ao longo da história eclesiástica
o ensino de Jesus de que há apenas dois grandes mandamentos foi constantemente
ratificado. A didaqué[1],
por exemplo, diz que o caminho da vida se resume assim: “Em primeiro lugar, ame
a Deus, que criou você. Em segundo lugar, ame a seu próximo como a si mesmo.
Não faça a outro nada daquilo que você não quer que façam a você”[2].
Isto é, quem redigiu esse escrito nos primeiros séculos da era cristã, além de
acreditar que só existiam dois grandes mandamentos, entendia que o sentido do
segundo era expresso na declaração conhecida como “regra áurea”, registrada em
Mateus 7.12: “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam,
fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas”.
Semelhantemente, na epístola de
Barnabé, um escrito do período dos pais apostólicos, encontramos um ensino que
aparentemente contraria a ideia de que amar a si mesmo é algo requerido pelo
Senhor. O escritor diz que, dentre o conhecimento concedido para viabilizar a
peregrinação no “caminho da luz” está a seguinte ordem: “ama o teu próximo mais
do que a ti mesmo”. É claro que esse ensino não aparece literalmente na Bíblia,
mas o seu registro evidencia que a interpretação do segundo mandamento nos
primeiros séculos da igreja nada tinha a ver com a ideia combatida neste texto.
Vale frisar também que Agostinho
(354-430) de Hipona, teólogo de maior destaque no período patrístico, não
subscreveu a primazia do amor-próprio. Em sua visão, conquanto Jesus tenha
falado de três amores (a Deus, a si mesmo e ao próximo), somente dois deles são
mandamentos. Esse pensamento foi patentemente exposto em seu segundo sermão
sobre o Salmo 33, no qual ele asseverou que só existem dois preceitos do amor,
um relacionado a Deus e o outro ao próximo[3].
Ademais, no sermão sobre a renúncia de si mesmo, de maneira ainda mais
contundente, o Bispo de Hipona afirmou algo que confronta diretamente a
interpretação que estamos discutindo. Ele disse que “não há ninguém que não se
ame”[4].
Ou seja, na perspectiva de Agostinho, o amor a si mesmo não pode ser um
mandamento, porque é algo que todos fazem sem ninguém precisar mandar. Esse
raciocínio reaparece num sermão do teólogo sobre a epístola de Tiago, no qual
ele conclui: “Deus não julgou necessário encarregar-te de te amares a ti
próprio porque não há ninguém que não ame a si mesmo”[5].
Não obstante, é possível que alguém
indague: “o que eu tenho a ver com a forma como Agostinho (354-430) ou qualquer
outro entendeu o texto? Eu quero saber o que a Bíblia diz!” Se você fez esse
questionamento, está no caminho certo. Pois, de fato, nossas conclusões e
práticas doutrinárias devem vir exclusivamente das Escrituras. Entretanto, é
importante considerar o testemunho histórico a fim de demonstrar que a
interpretação que defenderemos daqui por diante não é uma novidade
hermenêutica. Porque a inexistência de alguém na história da igreja que tenha
chegado a mesma conclusão, pode indicar que a interpretação escolhida acabou de
ser inventada. Consequentemente, o risco de ela ser produto da influência de
correntes de pensamento pós-modernas aumenta bastante. Destarte, doravante nos
concentraremos na análise do texto bíblico.
3. Contexto original do segundo grande mandamento
Para o entendimento correto do
segundo grande mandamento, é necessário considerar o contexto em que ele
aparece pela primeira vez. Afinal de contas, a frase de Jesus é, na verdade,
uma citação. Inclusive, o contexto em que ela foi proferida exigia que fosse
assim. Porque a declaração do Mestre surge em resposta à pergunta de um doutor
da lei a respeito do “grande mandamento da lei” (Mateus 22.36). Logo, a
explicação tinha de conter uma citação da lei. Por isso, unindo Deuteronômio
6.5 e Levítico 19.18, Ele respondeu: “Amarás ao Senhor, teu Deus, de todo o teu
coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e
grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como
a ti mesmo” (Mateus 22.37-39). Tendo isso em mente, precisamos, inicialmente,
entender o sentido pretendido em Levítico 19.18.
Analisando o contexto imediato do
referido versículo, verificamos que toda a perícope na qual ele está inserido
trata da relação do indivíduo com seu semelhante, apontando no sentido oposto
do ego. Senão vejamos, nos versículos 9 e 10, há uma ordem para não
recolher os restos da colheita que caírem no chão, a fim de que os pobres e
estrangeiros pudessem pegar e se alimentar; nos versículos 11,13 e 14 há leis
contra o prejuízo causado às outras pessoas; do versículo 15 ao 17, fala-se
sobre o tratamento que deve ser dispensado ao semelhante. Além disso, o termo
traduzido como próximo, o hebraico rêaʼ, aparece três vezes na perícope.
Levando em conta esses elementos
fica claro que, originalmente, a ordem de amar o próximo apontava para fora e
não para dentro. No entanto, alguém pode objetar argumentando que, para chegar
a esse entendimento, seria necessário analisar o texto em seu idioma original.
Esta é, sem dúvida, uma observação relevante. Aliás, esse é um passo
fundamental para uma exegese honesta. Apesar disso, creio que, para nossa
reflexão, é preciso verificar somente a parte final do versículo, uma vez que é
ela quem define a maneira como o mandamento deve ser cumprido. Contudo, vale
ressaltar que a primeira parte do versículo também indica que a intenção original
é orientar a relação com os outros, e não consigo mesmo. Porquanto, o texto
diz: “Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas
amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Isto é, amar o próximo como a si mesmo,
na perspectiva divina, é assumir uma postura interior que modifique a forma
como tratamos as pessoas. O parâmetro para essa atitude é o amor-próprio. De
modo que consideremos o outro tão digno de respeito, justiça e compaixão como
nós nos consideramos.
No idioma em que o texto foi
redigido, o hebraico, a parte final do texto começa com a expressão wᵉʼāhabhtâ,
a qual é formada pela união de uma partícula chamada waw conjuntivo,
cuja função é unir palavras e orações, com o verbo ʼāhabh, que significa
amor. De acordo com Gusso, o waw conjuntivo geralmente é traduzido “pela
conjunção ‘e’; em alguns casos, mais raros, deverá ser traduzido ‘mas’ ou
‘então’.”[6]
As principais traduções da Bíblia para o português (ACF, ARC, ARA, NVI) revelam
que a maioria dos tradutores concluiu que Levítico 19.18 é um dos casos em que
o waw conjuntivo deve ser traduzido como “mas”. Sendo assim, a
inferência mais razoável é que “amar o próximo como a si mesmo” (Levítico
19.18b) é o oposto de “guardar ira contra ele ou praticar a vingança” (Levítico
19.18a). Quanto ao hebraico ʼāhabh, conforme o Novo Dicionário
Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, Levítico 19.18 é um
dos poucos casos em que o termo “é usado para expressar a ordem de Deus para
amar ao próximo”[7]. E, como a
tradução indica, o verbo está na segunda pessoa do singular. Ou seja, a pessoa
com quem se fala; ou melhor, com quem Deus fala. É ela quem tem que amar os
outros.
No tocante à frase final do
versículo, o ponto fulcral para entender o propósito do texto é o emprego das
preposições e dos sufixos pronominais das palavras lᵉrēʽăkhâ e kāmôkhâ,
visto que as duas utilizam o sufixo pronominal da segunda pessoa do
singular (khâ), o qual normalmente indica posse. Isso revela que o
mandamento diz respeito ao relacionamento entre o indivíduo e as outras
pessoas. Trata-se do “teu” próximo e de “ti mesmo”. E a relação entre esses
dois personagens é modelada pelo amor-próprio. O uso do vocábulo kᵉmô (ou
kāmô) corrobora essa conclusão. Porque, segundo o BDB[8],
trata-se de um advérbio derivado da preposição kᵉ (como, conforme), a
qual caracteriza o grau comparativo de igualdade[9].
Todavia, o advérbio kᵉmô, no versículo em questão, expressa a forma como
a ação verbal (indicada pelo verbo ʼāhabh) é executada, funcionando como
um advérbio de modo. Esse dado nos aproxima da intenção original do segundo
grande mandamento, qual seja, explicitar a maneira como o amor deve ser
praticado. Haja vista que não se trata de mero sentimento, mas sim de uma
postura interior que se traduz em atitudes exteriores. Com base nisso, podemos
concluir que a ideia do texto é: ame o seu próximo de acordo com o amor que
você tem por si mesmo; do jeito que você já se ama, ame. Logo, o amor a si
mesmo não é um mandamento, mas um pressuposto.
Outrossim, é digno de nota o fato
de que na Septuaginta[10]
o hebraico kᵉmô tenha sido vertido para o grego por meio da conjunção
adverbial hōs,
a mesma que aparece em Mt 22.39. De acordo com Gingrich[11], trata-se de uma palavra
que pode denotar comparação. E, por conta disso, sua tradução é geralmente “como” ou “assim como”[12].
James Swanson confirma e expande essa definição no Diccionario de Idiomas
Bíblicos atribuindo a ela a função de indicar a forma como algo ocorre[13].
O mesmo sentido é encontrado no Thayer’s Greek Lexicon, o qual, em
relação ao emprego de hōs em
Mt 22.39[14],
afirma que o termo é usado para apontar a maneira pela qual a ação expressa
pelo verbo se concretiza. Por conseguinte, embora a tradução mais frequente
seja “como”, a ideia transmitida é equivalente a “da mesma maneira”, “do mesmo
modo”, tal como ocorre com o hebraico kᵉmô.
Aparentemente,
essa também era a opinião de Jerônimo (342-420 d.C.). Dado que, ao traduzir kᵉmô
para o latim, na versão das Escrituras conhecida como Vulgata Latina,
ele optou pelo vocábulo sicut, uma conjunção subordinativa
comparativa, que significa “do mesmo modo que, assim como, como”[15].
A mesma palavra foi aplicada para traduzir o grego hōs, em Mt 22.39.
Esses indícios são suficientes para concluirmos que Jerônimo seguia o mesmo
raciocínio de Agostinho; qual seja, a ideia de que, no segundo mandamento, o amor-próprio
é tomado como certo. E, portanto, não se trata de uma ordem.
4.
Como a Bíblia explica o segundo grande mandamento?
Partindo
do princípio hermenêutico de que as Escrituras interpretam as Escrituras,
precisamos verificar como a Bíblia interpreta o mandamento de amar o próximo
como a nós mesmos. Ao fazermos isso, para surpresa de alguns, concluímos que
sempre que a Bíblia explica o segundo grande mandamento o conceito de que o
amor-próprio é também um mandado divino, como se houvesse no enunciado do
mandamento uma espécie de “ordem casada”, não aparece. Ao contrário, as
explicações apontam para a postura que o indivíduo deve assumir em relação ao
outro, e não a si mesmo.
Em Mateus 5.43, por exemplo, Jesus, ao dizer “Ouvistes o que foi dito: amarás o
teu próximo, e odiarás o teu inimigo”, traz à lume um dos ensinamentos
populares entre o povo da época. Algo que eles ouviam nas sinagogas (“ouvistes
o que foi dito”) e que revelava o entendimento de que o segundo grande
mandamento se referia ao tratamento dispensado aos outros, e não a si mesmo.
Outro
texto que segue a mesma linha é a parábola do bom samaritano. Nela, Jesus,
respondendo à indagação de um doutor da lei, expõe o verdadeiro sentido do
mandamento por meio de uma história em que um judeu ferido é socorrido por um
samaritano; indicando que o amor seletivo praticado pelos judeus daquele tempo
não se coadunava com a essência da Lei. Tiago parece ensinar a mesma coisa
quando trata da “lei real”[16].
Porquanto, depois de sublinhar a importância de cumprir o mandamento, enquadra
a acepção de pessoas como pecado (Tiago 2.8,9). Similarmente, Paulo, em Romanos
13.8, assevera que amar os outros é o cumprimento da lei, e não amar a si
mesmo. Ele também explica que o mandamento tem a ver com aquilo que fazemos aos
outros, e não a nós mesmos: “Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás
falso testemunho, não cobiçarás, e, se há algum outro mandamento, tudo nesta
palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Romanos 13.9).
Esse
é o ensino de Jesus. Até porque, como o Filho de Deus declarou no evangelho de
João, Ele é o padrão para o cumprimento do segundo grande mandamento: “Um novo
mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a
vós, que também vós uns aos outros vos ameis” (João 13.34). E o amor de Cristo
pelos homens nunca foi caracterizado pela ênfase no amor-próprio. Com efeito,
foi por amor que Ele morreu por nós. Pois “o Filho do Homem não veio para ser
servido, mas para servir e para dar a sua vida em resgate de muitos” (Mt
20.28). Por essa razão, a Palavra de Deus nos concita a andarmos em amor, “como
também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e
sacrifício a Deus, em aroma suave” (Ef 5.2). Ou seja, o fato de Ele decidir
sofrer por nós não significava que Ele não tinha amor-próprio. É claro que
Jesus se ama! Mas o amor d’Ele por Ele mesmo é na medida certa, e não
desequilibrado como o nosso.
Tratando
desse assunto, Tomás de Aquino escreveu: “é por nos amarmos desordenadamente a
nós mesmos que também desordenadamente desejamos os bens temporais; pois, amar
alguém é querer-lhe bem. Por onde e manifestamente, o amor desordenado de si é
a causa de todo pecado”[17].
Conquanto não seja uma sentença bíblica, é uma afirmação baseada no que as
Escrituras dizem sobre a humanidade decaída. Porque com a queda a natureza
humana foi corrompida a tal ponto que suas disposições interiores se tornaram
pecaminosas. De sorte que até mesmo suas emoções foram alcançadas pela
corrupção. Como resultado, aquilo que deveria ser natural se tornou iniquidade.
O amor-próprio, por exemplo, foi tão inflado que o homem não quis mais se
submeter a nenhuma das exigências divinas. Ao contrário, engajou-se na busca de
uma felicidade sem Deus. De maneira que o “amor a si mesmo”, como diz Paulo a
Timóteo (2Tm 3.1,2), se transformou numa postura pecaminosa.
Por
esse motivo, a conclusão bíblica é que o antecedente necessário para o cumprimento do segundo
mandamento é a regeneração, e não o amor-próprio. Senão vejamos, João, em sua
primeira carta, destacou: “Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de
Deus; e qualquer que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que
não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4.7,8). Nascer de Deus é o
requisito para o cumprimento da lei real, e não amar a si mesmo. Afinal, de
acordo com o texto bíblico, “nunca ninguém aborreceu a sua própria carne; antes,
a alimenta e sustenta” (Ef 5.29). Isto é, nunca houve alguém que não se amasse.
Este é o pressuposto do segundo grande mandamento.
Diante dessa asserção, alguém certamente dirá: “Que absurdo! Existem muitas pessoas que não se amam!” Isso porque, alguns, ao lerem a argumentação apresentada até aqui, concluirão que afirmar que não existe alguém que não se ame é o mesmo que desconsiderar os muitos casos de suicídio e autodescuido. No entanto, quem decidir refletir sobre a questão, perceberá que se trata de uma interpretação diferente dos fatos, e não de desconsideração. Os casos de suicídio e autodescuido são encarados como manifestações da natureza corrompida que, desde a queda, tem caracterizado o homem, e não como resultado da falta de amor-próprio. A esse respeito, John Piper comenta:
Mesmo o suicídio é
procurado com este desejo de amor por Si mesmo. Em meio ao sentimento de total
falta de sentido e esperança e da paralisia da depressão, a alma diz: "Não
dá para ficar pior do que isso. Portanto, mesmo se eu não sei o que ganharei
com a morte, sei que vou sair da situação em que estou”. Destarte, o suicídio é
uma tentativa de fugir ao que é intolerável. É um ato de amor a Si mesmo[18].
Em resumo, a base do segundo
mandamento é o primeiro, e não o amor-próprio. Haja vista que este já existe em
todo ser humano. Assim, como diz Piper, “antes de você tornar sua busca de Si
mesmo a medida da sua doação de Si mesmo, torne Deus o alvo da sua busca de Si
mesmo”[19].
Ou seja, de acordo com essa perspectiva, a origem do amor ao próximo está em
Deus. Dado que Ele é amor (1Jo 4.8). Defender a ideia de que é preciso se
engajar na busca do fortalecimento do amor-próprio para cumprir o segundo
mandamento é o mesmo que dizer que o ser humano é a fonte desse amor. A Bíblia,
porém, afirma o contrário: “Amados, amemo-nos uns aos outros; porque o amor
é de Deus (ou “procede de Deus”, como traduz a ARA)” (1Jo 4.7a).
5.
Conclusão
Em face dos argumentos apresentados,
penso que é difícil manter a ideia de que para amar o próximo é preciso que o
indivíduo busque se amar. Porquanto, ainda que a interpretação combatida neste artigo
seja a mais popular, não há fundamentação bíblica suficiente para sustentá-la. Para
abraçá-la é necessário dar um salto hermenêutico e utilizar a “achologia” em
vez da exegese. Mas isso não é novidade. Desde que a Bíblia foi redigida há
pessoas tentando torcer o seu sentido (2Pe 3.15,16). E, muitas vezes, essas
tentativas envolvem alterações sutis no ensino das Escrituras; visto que o
falso ensino geralmente vem sob o disfarce da verdade. Contudo, mesmo a mudança
mais leve produz um grande prejuízo. Por isso, Pedro nos admoesta: “Vós,
portanto, amados, sabendo isto de antemão, guardai-vos de que, pelo engano dos
homens abomináveis, sejais juntamente arrebatados, e descaiais da vossa firmeza”
(2Pe 3.17).
Que o Senhor nos abençoe!
Pr. Cremilson Meirelles
[1] A didaquê é um documento
cristão do final do primeiro século d.C., que é reconhecido como o escrito mais
importante da era pós-apostólica. Pois se trata do registro de diversas fontes
orais e escritas que lançam luz sobre a compreensão dos primeiros cristãos
acerca de tópicos fundamentais da vida eclesiástica.
[2] Padres Apostólicos:
Clemente Romano, Inácio de Antioquia Policarpo de Esmirna, O pastor de Hermas,
Carta de Barnabé, Pápias, Didaqué. Coleção Patrística. Vol. 1. São Paulo:
Paulus, 2014, p. 198.
[3] AGOSTINHO, Santo. Comentário aos Salmos: Salmos 1-50.
Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 2014.
[4] AGOSTINHO, Santo. Sermões III. Sermão
330. Traduzido de OEuvres complètes de Saint Augustin. Organizada pelo
Abade Raulx. Bar-Le-Duc: L. Guérin & Cie, Editeurs, 1868, por Souza Campos,
E. L. de. Cotejado com as versões em italiano e espanhol, da Ordem de Santo
Agostinho. Editado por Valdemar Teodoro. Disponível em
<https://archive.org/details/santo-Agostinho-sermoes-iii_202011/page/n1055/mode/2up>.
Acesso em 16 abr. 2022.
[5] AGOSTINHO, Santo. Sermão
inédito sobre a carta de São Tiago apud Christo Nihil Praeponere, in
Qual deve ser a medida do amor próprio? Disponível em <https://padrepauloricardo.org/blog/qual-deve-ser-a-medida-do-amor-proprio>.
Acesso em 16 abr. 2022.
[6] GUSSO,
Antônio Renato. Gramática instrumental do hebraico. São Paulo: Vida
Nova, 2005, p. 57.
[7] VANGEMEREN,
Willem A. Novo dicionário
internacional de teologia e exegese do antigo testamento. Vol. 1. São Paulo: Cultura Cristã, 2011,
[8] BROWN,
Francis; DRIVER, Samuel Rolles e BRIGGS, Charles August. The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon. USA: Hendrickson, 1999.
[9] GUSSO,
2005, p. 110.
[10] Versão
grega do Antigo Testamento.
[11] Thayer’s Greek Lexicon. Versão
digital. Disponível em
<https://www.blueletterbible.org/lexicon/g5613/kjv/tr/0-1/>. Acesso em 27
abr. 2022.
[12]
GINGRICH, Felix Wilbur. Léxico do Novo Testamento. São Paulo: Vida nova, 2005,
p. 228.
[13] SWANSON,
James. Diccionario de Idiomas Bíblicos Griego (Nuevo Testamento). Edição
eletrônica. Bellingham, WA: Logos Bible Software, 1997, p. 336.
[14] Texto em que Jesus cita o segundo grande mandamento.
[15] FARIA,
Ernesto. Dicionário escolar latino-português. Ministério da Educação e Cultura,
1962, p. 919.
[16] Expressão usada por Tiago para
designar o segundo grande mandamento, em Tg 2.8.
[17]AQUINO, Tomás. Suma Teológica
(Ia IIae parte, q. 77, art. 4).
[18] PIPER, John. Em busca de Deus: A
plenitude da alegria cristã. São Paulo: Shedd, 2008, p. 176.
[19]
PIPER, 2008, p. 177.
Graça e Paz, muito boa a explanação referente ao tema. Que Deua continue lhe abençoando.
ResponderExcluirAmém! Obrigado.
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