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CULTO ARRASTADO... EXISTE ISSO?

 

É possível que você nunca tenha ouvido essa expressão, mas ela é bastante comum em algumas igrejas pentecostais. Geralmente é empregada quando as pessoas presentes no culto não apresentam a reação esperada pelos dirigentes. Ou seja, quando não respondem com gritos de “glória a Deus”, “aleluia” ao serem estimuladas pelo pregador, ou não se expressam fisicamente levantando as mãos ou fazendo outro movimento durante o canto dos hinos. Diante desse cenário, vez ou outra, alguém diz que o culto está “arrastado”. Há quem diga ainda que consegue sentir o ambiente “pesado”, “carregado”, quando esse tipo de coisa acontece. Ao que parece, o que se tem em mente ao fazer essas afirmações é que existe alguma espécie de impedimento de natureza espiritual para que Deus atue no culto. Mas será que a Bíblia fundamenta essa ideia? É o que veremos a seguir.

Bem, embora essa linguagem pareça natural para quem a utiliza, a ideia de “cargas negativas” e “ambientes pesados” é estranha à fé cristã. Na verdade, essas ideias são oriundas de religiões de cunho espiritualista, como a umbanda, por exemplo; na qual admite-se a possibilidade de existirem pessoas com “problemas de encosto ou cargas negativas”[1]. Sua presença, de acordo com essa doutrina, é capaz de fazer alguém ficar cansado ou ter dores de cabeça só de entrar no ambiente[2]. Por essa razão, adeptos dessa religiosidade costumam ter em suas residências a planta “espada-de-São-Jorge”. Pois, segundo o Dicionário de Umbanda ela “absorve fluidos nocivos e cargas negativas de pessoas e ambientes aos quais protege com grande eficácia”[3]. Semelhantemente, no espiritismo kardecista as cargas negativas exercem grande influência. De maneira que até mesmo as doenças podem ser atribuídas a elas. A explicação para isso, segundo o ensino espírita, é que

 

permanentemente, recebemos energia vital que vem do cosmo, da alimentação, da respiração e da irradiação das outras pessoas e para elas imprimimos a energia gerada por nós mesmos. Assim, somos responsáveis por emitir boas ou más energias às outras pessoas. A energia que irradiamos aos outros estará impregnada com nossa carga energética, isto é, carregada das energias de nossos pensamentos e de nossos sentimentos, sendo necessário que vigiemos o que pensamos e sentimos[4].

  

Em resumo, as cargas negativas ou positivas só aparecem porque as pessoas respondem positiva ou negativamente aos estímulos que recebem. Por conta disso, os espíritas têm a prática de “dar passes”, uma técnica que, de acordo com eles, é capaz de limpar o indivíduo que recebe o passe “de cargas negativas”[5]. Outro aspecto interessante desse segmento, é que, assim como pensam os evangélicos que adjetivam os cultos em que há menos manifestações fenomênicas como “arrastados”, os espíritas entendem que “quanto mais estiver o ambiente carregado de eletricidade ou magnetismo positivo, mais eficiente será a reunião. Quanto mais esse ambiente estiver permeado de forças negativas, mais perturbada a reunião”[6]. Isso porque, as energias negativas interferem “nas linhas de força estabelecidas pelos espíritos”[7].

Você consegue perceber a semelhança entre o conceito de “culto arrastado” e a visão espírita? Outra similaridade bem evidente é o fato de que não há nas Escrituras uma ocasião sequer em que o culto foi impedido ou dificultado porque havia alguém que não estava em harmonia com as “cargas positivas”. Com efeito, os relatos de cultos interrompidos não têm relação alguma com a falta de resposta ou com a ausência de manifestações dos cultuadores. Um exemplo disso está registrado em Atos 20.7-12, ocasião na qual o culto da igreja de Trôade foi interrompido por causa de um acidente que provocou a morte de um jovem, e não por “cargas pesadas”. Aliás, cumpre observar que, logo em seguida, o jovem foi ressuscitado e o culto foi retomado.

Sinceramente, não creio que a espiritualidade ou o bom andamento de um culto possa ser medido pela sensação de haver “cargas negativas” ou “uma atmosfera pesada”. Se assim fosse, estaríamos colocando a experiência e a sensorialidade acima das Escrituras. Porquanto, as sensações não são aferidores bíblicos para medição da espiritualidade de um culto. Afinal, a espiritualidade cristã não se limita ao culto. Essa perspectiva limitada e dicotômica da espiritualidade como restrita aos espaços destinados à devoção, era uma característica da cosmovisão medieval. Período no qual “a espiritualidade esteve enclausurada atrás das paredes do mosteiro”[8]. Naquele contexto, separar-se do mundo e unir-se a uma ordem religiosa era a demonstração máxima de espiritualidade. No entanto, a partir do século XVI, com a Reforma Protestante e os movimentos anabatistas, os cristãos, ao invés de abandonarem o convívio social,começaram a pensar na devoção em termos de viver a vida diária de acordo com a vontade de Deus” [9], tal como orientam as Escrituras. Assim, “a espiritualidade tornou-se uma questão de como se vivia a vida cristã com a família, no campo, na oficina, na cozinha ou no comércio” [10]. Essa compreensão parece estar ausente nos ambientes em que predomina a ideia de uma espiritualidade circunscrita ao local do culto e dependente de manifestações físicas e sensações.

Talvez por isso seja comum vermos indivíduos que, conquanto apresentem uma performance alinhada com a espiritualidade pentecostal durante o culto, no dia a dia dão um péssimo testemunho. Pois, na sua concepção, ser espiritual é respirar forte, bater o pé no chão, levantar as mãos, falar línguas e saltitar. Fazendo isso, ter um bom caráter é desnecessário. Já o cristão tradicional entende que a espiritualidade diz respeito a toda a sua vida. Tudo o que ele faz, comer, beber ou qualquer outra coisa, deve ser para a glória de Deus (1Coríntios 10.31). A expressão latina Coram Deo, bastante utilizada por cristãos reformados, resume muito bem essa ideia. Haja vista que seu significado (perante Deus) remete à compreensão de que devemos viver cada momento na presença de Deus, a qual está alinhada com o ensino bíblico de Colossenses 3.17: “E, quanto fizerdes por palavras ou por obras, fazei tudo em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai”. Em suma, como afirmou R.C. Sproul, “viver Coram Deo é viver a vida inteira na presença de Deus, sob a autoridade de Deus, para a glória de Deus”[11].

Sob essa ótica, o culto ainda que seja uma parte importante da espiritualidade cristã não é suficiente para defini-la. Visto que, como falamos, deve existir coerência entre os momentos de devoção e a vida prática. De modo que o novo nascimento e o processo de santificação sejam evidenciados no cotidiano. Sendo assim, os indicadores pentecostais de espiritualidade perdem o sentido. Afinal, por mais que a Bíblia fale de episódios em que pessoas falaram línguas e profetizaram, em nenhum momento é dito que essas práticas eram acompanhadas por pulos, tremedeiras, respirações fortes ou pés batendo no chão. De acordo com o ensino bíblico, o culto era e deve ser organizado (1Coríntios 14.40), racional (Romanos 12.1) e tem de conter os seguintes elementos: oração (1Timóteo 2.8; 3.14,15), leitura da Bíblia (1Timóteo 4.13), cânticos (Colossenses 3.16), Ceia do Senhor (1Coríntios 11.17-34), batismo (Mateus 28.19), ofertório (1Coríntios 16.2), pregação da Palavra (2Timóteo 4.2) e ação de graças (Filipenses 4.6). Isso é o que vai caracterizar um culto como bíblico e espiritual, e não as sensações de “cargas positivas” ou “negativas”. Até porque, como vimos, isso tem mais a ver com o espiritismo que com o cristianismo.

É claro, entretanto, que a devoção cristã não é apenas coletiva. Ela também possui um aspecto individual, que se manifesta mais frequentemente na esfera privada (Mateus 6.6). Porém, vale ressaltar que a adoração coletiva inclui, necessariamente, a individual. As orações coletivas, por exemplo, requerem várias posturas de devoção individual. De igual modo, durante a pregação, cada indivíduo deve assumir uma postura reverente e atenta. Tudo isso para a harmonização do culto coletivo, a fim de glorificar o Todo-poderoso. Contudo, é necessário frisar que ainda que alguém não esteja em sintonia com o propósito dos demais, isso não afetará a espiritualidade e nem o andamento do culto. Jesus deixou isso bem claro ao contar a parábola do fariseu e do publicano. Ele disse que esses dois homens subiram ao templo para orar. Chegando lá, os dois, no mesmo lugar, ao mesmo tempo, oraram. O fariseu fez uma oração carnal, cheio de orgulho por sua espiritualidade mostrada aos olhos de todos, enquanto o publicano apenas reconheceu sua condição de pecador miserável e clamou pela misericórdia divina. De acordo com Jesus, ele desceu justificado. Isto é, a falta de espiritualidade do fariseu não atrapalhou a devoção do publicano. Igualmente, se alguém no culto não estiver “ligado” a adoração coletiva não será deficiente, mas sim a devoção pessoal de quem estiver nessa condição.

Em face do exposto, concluímos que “culto arrastado” não existe. É apenas uma expressão cunhada por pentecostais para nomear a situação em que os elementos do culto pentecostal estão ausentes. Ou seja, trata-se de algo ligado exclusivamente à experiência, e não às Escrituras. Isto posto, é imperioso refletirmos acerca da maneira como entendemos o culto e a espiritualidade cristã. Não podemos permitir que esse entendimento seja guiado por pensamentos oriundos da religiosidade popular ou da experiência pessoal. É a Bíblia quem deve nos guiar! Do contrário, teremos de abrir mão do princípio sola scriptura. Não dá para servir a dois senhores! Ou seguimos a experiência ou a Bíblia. Usar a experiência como instrumento hermenêutico seria o mesmo que abandonar a Palavra de Deus. Por conseguinte, é a Escritura que deve determinar a forma como devemos proceder e interpretar a realidade. Nada além das Escrituras.

Pr. Cremilson Meirelles

 


[1] ZEUS, Cláudio. Umbanda sem medo. Vol. III. Joinville, SC: Clube de Autores, 2011, p. 29.

[2] Cf. Cargas negativas, ambientes pesados... Disponível em CEIFA DE LUZ: Cargas negativas, ambientes pesados... (ceifadeluzespirita.blogspot.com) Acesso em 20 fev. 2022.

[3] PINTO, Altair. Dicionário da Umbanda. 6 ed. São Paulo: Editora Eco. 2007, p. 155.

[4] Como surgem as doenças? O espiritismo explica. 2009. Disponível em https://www.luzespirita.net/como-surgem-as-doencas-o-espiritismo-explica/

[5] PASTORINO, C. Torres. Técnica da Mediunidade. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Sabedoria, 1975 p. 17.

[6] PASTORINO, 1975, p. 13.

[7] PASTORINO, 1975, loc. cit.

[8] OLD, Hughes Oliphant. What is Reformed Spirituality? Played Over Again Lightly. In: LEITH, J. H. (Org.). Calvin Studies VII. John Calvin Studies. Davidson, N.C., 1994, p. 61-68.

[9] Op. cit.

[10] Op. cit.

[11] SPROUL, R. C. What Does “Coram Deo” Mean? Disponível em https://www.ligonier.org/learn/articles/what-does-coram-deo-mean Acesso em 20 fev. 2022.

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3 comentários:

  1. Já tinha ouvido essa expressão e nunca parado pra pensar sobre o assunto. Excelente reflexão e apontamento.

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  2. Muito interessante. Acredito que está reflexão não é para diminuir alguém ou mesmo sobressair outro. Creio de verdade que, é esclarecedora e uma grande oportunidade para corrigir pensamentos e até mesmo melhor a nossa postura, intenções e realizações diante do nosso eterno Deus. Obrigado pela maravilhosa oportunidade de reflexão. Paz.

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    1. Eu é que agradeço pelo comentário. Deus continue a abençoá-lo!

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