Essa, com certeza, é uma das frases mais
pronunciadas pelos evangélicos, e, decerto, figura entre as mais reproduzidas
em adesivos de carro. Contudo, nem todos que a usam têm a exata noção do objeto
dessa fidelidade. A maioria, sem dúvida, acredita que o Todo-poderoso é fiel
a cada crente. Há, entretanto, quem vá mais longe e creia que essa fidelidade
abrange toda a humanidade. Apesar disso, alguns contestam essas conclusões,
argumentando que o Senhor é fiel a Si mesmo. Quem está com a razão, afinal? A
maioria? A minoria? O pastor da igreja que você frequenta? Um pastor renomado?
É óbvio que a resposta é: nenhuma das alternativas anteriores. Pois, só na
Bíblia podemos encontrar a solução para esse dilema. Mas, o que a Bíblia diz
acerca disso? É o que pretendemos explicar.
Bem, para alcançar esse objetivo, é
imprescindível analisar 2Timóteo 2.13, visto que é a mais conhecida declaração
bíblica em relação à fidelidade divina: “se formos infiéis, ele permanece fiel;
não pode negar-se a si mesmo”. Sem dúvida alguma, a compreensão dessa
declaração é fundamental para elucidar a questão supracitada. Para interpretá-la,
no entanto, é preciso levar em conta o contexto em que está inserida. Haja
vista que ela pertence a uma seção que vai do versículo 11 ao 13, e se inicia
com a repetição de uma expressão
característica da primeira carta destinada ao jovem pastor da igreja de Éfeso,
a saber, “Palavra fiel é esta” (1Timóteo 1.15; 3.1; 4.9).
Outrossim, é necessário frisar que,
conquanto o idioma original do Novo Testamento seja o grego, na seção ora
analisada, o apóstolo Paulo, após a introdução (2Timóteo 2.11), lança mão de uma
peculiaridade da poesia hebraica, conhecida como paralelismo, a fim de indicar
uma estreita relação entre as quatro declarações de 2Timóteo 2.11-13. Dessa maneira,
a primeira e a segunda asserção enfatizam o sofrimento e a resignação que
caracterizam a vida do servo de Deus, a partir do contraste de ideias: “se morrermos com ele, também com ele viveremos; se sofrermos, também com ele reinaremos”
(2Timóteo 2.11,12a). A terceira e a quarta linhas, por outro lado, contrapõem a
deslealdade dos apóstatas à fidelidade divina, expressando duas vezes a mesma
ideia com palavras diferentes: “se o negarmos,
também ele nos negará; se formos infiéis, ele permanece fiel; não pode negar-se a si mesmo”
(2Timóteo 2.12b,13). Perceba que ser infiel é usado como sinônimo de negar o Senhor.
De igual modo, a fidelidade de Deus deve ser entendida à luz de Sua atitude
diante da infidelidade dos apóstatas. Isto é, Ele permanece fiel à Sua ameaça
de negar quem o nega. Se não o fizesse, estaria negando a Si mesmo. Porquanto,
Ele prometeu: “Mas qualquer que me negar
diante dos homens, eu o negarei
também diante de meu Pai, que está nos céus” (Mateus 10.33).
Feitas essas considerações, a conclusão
mais lógica seria que Deus é fiel a Si mesmo, ou, como preferem alguns, fiel às
Suas promessas; o que, no fim das contas, dá no mesmo. Em suma, não importa o
que aconteça, Ele cumpre Sua Palavra. Se o homem apostata, não escapa do juízo
por ter, por um momento, se aproximado da igreja. Antes, Ele cumpre o que
prometeu.
Não obstante, há um texto que,
aparentemente, põe em dúvida essa solução. Refiro-me a Isaías 54.10, o qual, na
Nova Versão Internacional (NVI), é vertido da seguinte maneira: “Embora os
montes sejam sacudidos e as colinas sejam removidas, ainda assim a minha fidelidade para com você não será
abalada, nem a minha aliança de paz será removida, diz o Senhor, que tem
compaixão de você”.
Todavia, essa tradução é exclusiva da
NVI. Nenhuma das versões mais populares traz a palavra fidelidade. Essa
particularidade é, no mínimo, uma indicação de que a utilização dessa versão de
Isaías 54.10 para definir a questão é temerária. Por conseguinte, depreendemos que
uma análise séria do texto em pauta deve, necessariamente, verificá-lo em seu
idioma original, o hebraico. Fazendo isso, o intérprete encontrará o vocábulo ḥēsēd, cujo significado abarca as ideias
de bondade, misericórdia, amor, lealdade e fidelidade; e, conquanto possa ser
aplicado às relações humanas, “o exercício divino de ḥēsēd está baseado no relacionamento da aliança, com seu povo” (VANGEMEREN,
2011, p. 209). Aliás, é por causa do ḥēsēd
que a ira do Todo-poderoso não é derramada: “em grande ira, escondi a face de
ti por um momento; mas com benignidade (ḥēsēd)
eterna me compadecerei de ti, diz o SENHOR, o teu Redentor” (Isaías 54.8). Afinal,
como diz a Escritura, “As misericórdias (ḥēsēd)
do SENHOR são a causa de não sermos consumidos” (Lamentações 3.22a).
O ḥēsēd,
portanto, está vinculado a uma relação pactual. Uma evidência disso é a
associação entre ḥēsēd e bᵉrîth (aliança), a qual aparece em
vários textos:
“A
minha benignidade (ḥēsēd) lhe
guardarei para sempre, e o meu concerto (bᵉrîth)
lhe será firme” (Salmos 89.28).
“Mas
a misericórdia (ḥēsēd) do SENHOR é de
eternidade a eternidade sobre aqueles que o temem, e a sua justiça sobre os
filhos dos filhos; sobre aqueles que guardam o seu concerto (bᵉrîth), e sobre os que se lembram dos seus
mandamentos para os cumprirem” (Salmos 103.17,18).
Conforme demonstrado nos versículos
acima, o ḥēsēd é eterno. Por isso, em
Isaías 54.10, o próprio Deus contrasta a efemeridade dos montes, que podem ser
removidos, com a eternidade e imutabilidade de seu ḥēsēd, visto que este é resultado de seu caráter, e, evidentemente,
não depende da ação humana, mas da compaixão do Criador. Consequentemente, o ḥēsēd divino é a base para toda súplica
ao Senhor. Ou seja, é a compaixão divina que motiva o indivíduo a abordá-Lo, e
não Sua fidelidade ao homem: “Perdoa, pois, a iniquidade deste povo, segundo a
grandeza da tua benignidade (ḥēsēd) e
como também perdoaste a este povo desde a terra do Egito até aqui” (Números 14.19);
“Volta-te, SENHOR, livra a minha alma; salva-me por tua benignidade (ḥēsēd)” (Salmos 6.4).
Provavelmente, por conta das implicações
mencionadas, a ARC, ACF e ARA, traduziram ḥēsēd,
em Isaías 54.10, respectivamente, como benignidade
e misericórdia. Essa também é a
tradução da Vulgata Latina (latim misericordia)
e da LXX. Quanto a esta última, vale salientar que ela emprega a mesma tradução
de ḥēsēd utilizada no Novo
Testamento, a saber, o grego éleos (Oséias 6.6; Mateus 9.13), cujo significado é misericórdia, e não fidelidade. Logo, é
razoável concluir que o texto em questão não aponta a fidelidade de Deus a
Israel, mas o amor imutável que fundamenta Sua aliança com o povo. Isso é
claramente demonstrado pela utilização de um paralelismo sinonímico entre as
expressões “minha fidelidade (ḥēsēd)”
e “minha aliança (bᵉrîth) de paz”.
Isto é, tal como ocorre em 2Timóteo 2.12b,13, a mesma coisa é dita de maneira
diferente. Sendo assim, a razão do favor divino para com Seu povo é o Seu amor
e Sua aliança, e não a fidelidade aos homens. Até porque, tanto o amor quanto a
aliança se originam em Deus.
Essa interpretação é corroborada quando
analisamos a promessa divina a Abraão, a qual foi feita e estabelecida com base
no próprio Criador, e não numa suposta fidelidade ao homem. Senão vejamos:
“e disse: Por mim mesmo, jurei, diz o SENHOR, porquanto fizeste esta
ação e não me negaste o teu filho, o teu único, que deveras te abençoarei e
grandissimamente multiplicarei a tua semente como as estrelas dos céus e como a
areia que está na praia do mar; e a tua semente possuirá a porta dos seus
inimigos. E em tua semente serão benditas todas as nações da terra, porquanto
obedeceste à minha voz” (Gênesis 22.16-18).
Ademais, é importante destacar que a frase
“minha fidelidade para com você”, presente na versão da NVI de Isaías 54.10, não
reflete a literalidade do texto hebraico. Possivelmente, porque o princípio de
tradução utilizado (equivalência dinâmica) prioriza as singularidades da
língua receptora, e, por conseguinte, às vezes, faz adaptações e não traduções. As versões ACF, a
ARC e a ARA, por outro lado, usam um princípio que prioriza a língua original
(equivalência formal). Por essa razão, não trazem a expressão “para com você”.
Isso inviabiliza a utilização da NVI, no trecho citado, para fundamentação da
ideia de que Deus é fiel ao homem.
Outro
texto importante para essa discussão é Romanos 8.29,30. Haja vista que afirma que a
aliança firmada com os crentes em Cristo é resultado de uma resolução divina
anterior à sua evangelização:
“Porque os que
dantes conheceu, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre
muitos irmãos. E aos que predestinou, a
esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que
justificou, a esses também glorificou.”
Essa
verdade é confirmada por Gênesis 3.15, texto conhecido como o primeiro evangelho,
onde Deus anunciou que a semente da mulher (Cristo) feriria a cabeça da
serpente. Ou seja, o problema do pecado teria uma solução. Entretanto, Deus não
tomou essa decisão no momento em que a compartilhou com Adão e Eva. De acordo
com as Escrituras, o Criador deliberou acerca da redenção antes mesmo que o
mundo fosse criado:
“Bendito o
Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as
bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo, como também nos elegeu
nele antes da fundação do mundo,
para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor [...]” (Efésios 1.3,4).
“[...] sabendo
que não foi com coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados
da vossa vã maneira de viver que, por tradição, recebestes dos vossos pais, mas
com o precioso sangue de Cristo,
como de um cordeiro imaculado e incontaminado, o qual, na verdade, em outro
tempo, foi conhecido, ainda antes da
fundação do mundo, mas manifestado, nestes últimos tempos, por amor de vós”
(1Pedro 1.18-20).
Esse propósito divino (Romanos 8.28), por ser
anterior à existência dos que haveriam de crer, não poderia ser prometido diretamente
aos homens. Logo, sua aplicação ou não aplicação não dependia deles, mas
daquele que deliberou. Destarte, se o Senhor não cumprisse o que decidira não
seria infiel aos homens, mas a Si mesmo. Outrossim, levando em conta que o
cumprimento de Suas promessas se baseia na aliança firmada, e que a aliança se
baseia na Sua fidelidade a Si mesmo, a argumentação de que Ele é fiel aos
homens cai por terra.
Na verdade, uma leitura atenta das
Escrituras demonstrará que a fidelidade divina é um atributo relacionado à
questão da verdade, e tem a conotação de integridade moral. Isto é, o fato de
Deus ser fiel “significa que Ele prova ser verdadeiro. Deus cumpre todas as
suas promessas” (ERICKSON, 2015, p. 283). Em decorrência disso, amiúde, Sua
fidelidade é associada ao Seu caráter. No último cântico de Moisés (Deuteronômio 32.4),
por exemplo, declara-se que “Deus é fidelidade (hebraico ’ěmûnâ), e não há nele injustiça; é justo e reto”. Uma análise
aprofundada de todo o texto revelará que “essa declaração define o contexto
tanto para o julgamento quanto para a misericórdia de Deus em relação a Israel
expressados no restante do cântico” (VANGEMEREN, 2011, p. 209). Portanto,
retidão, justiça e misericórdia estão intimamente ligadas à fidelidade do
Todo-poderoso.
Essa relação entre a fidelidade e o caráter
divino é evidenciada em muitos textos. Sobretudo, porque o hebraico ’ěmûnâ (fidelidade) aparece frequentemente
ao lado de tsdāqâ (justiça) e ḥēsēd (misericórdia), palavras que
indicam atributos morais.
“Bom
é louvar ao SENHOR e cantar louvores ao teu nome, ó Altíssimo, para de manhã
anunciar a tua benignidade (ḥēsēd) e,
todas as noites, a tua fidelidade (’ěmûnâ)”
(Salmos 92.1,2).
“Ó
SENHOR, ouve a minha oração! Inclina os ouvidos às minhas súplicas; escuta-me
segundo a tua fidelidade (’ěmûnâ) e
segundo a tua justiça (tsdāqâ)” (Salmos 143.1).
Deus não mente (Hebreus 6.18), não descumpre
promessas (1Reis 8.56) e aplica a justiça (Apocalipse 19.11) por causa do Seu caráter.
Por isso, quando fez a promessa a Abraão, jurou por Si mesmo (Hebreus 6.13).
Dessarte, embora tenha estabelecido um concerto com o patriarca, Sua fidelidade
se limitou ao Seu descendente, Jesus Cristo. Isso é confirmado por Paulo, em Gálatas 3.16: “Ora, as promessas foram feitas
a Abraão e à sua posteridade. Não diz: E às posteridades, como falando de
muitas, mas como de uma só: E à tua
posteridade, que é Cristo”. Até porque, as promessas divinas foram e estão
sendo cumpridas por meio da vinda do Messias: “Porque todas quantas promessas
há de Deus são nele sim; e por ele o Amém, para glória de Deus, por nós” (2Coríntios 1.20). Essa vinda nunca dependeu da fidelidade divina ao homem. Ela foi
determinada na eternidade (Apocalipse 13.8). Aquele que a determinou foi e continua
sendo fiel à Sua própria decisão. “E disse-me o SENHOR: Viste bem; porque eu velo sobre a minha palavra para a
cumprir” (Jeremias 1.12).
Inobstante, mesmo diante da falta de
embasamento bíblico, alguns tentam argumentar, a partir de uma lógica
aparentemente coerente, que a fidelidade de Deus aos homens decorre de Sua
fidelidade a Si mesmo. Os que optam por essa teoria, seguem o seguinte
raciocínio: cumprir a palavra é o mesmo que ser fiel; Deus cumpre Sua Palavra
em relação aos homens; Logo, Deus é fiel aos homens. Com base nessa “lógica”,
há ainda quem conclua que, já que o Senhor cumprirá Sua palavra referente ao
juízo dos demônios, Ele é fiel aos demônios.
Ainda que as ilações supramencionadas
não sejam igualmente absurdas, elas tomam o mesmo equívoco como ponto de
partida, qual seja, a ideia de que o cumprimento de uma promessa divina resulte
da fidelidade ao recebedor. O problema dessa compreensão está em negligenciar o
fato de que os crentes só desfrutam de tais promessas por causa de Cristo, e
não por seus méritos. É a união do salvo com Jesus (2Coríntios 5.17) que o torna
recebedor das promessas. Isso porque, ao recebê-lo como Salvador, o indivíduo se
torna filho de Deus (João 1.12), e, por conseguinte, coerdeiro com Cristo (Romanos 8.17).
Ante o exposto, concluímos que, uma vez
que o cumprimento de uma promessa não indica a fidelidade à outra pessoa, a não
ser Deus, são incorretas as inferências baseadas na vinculação entre as
promessas divinas e seus recebedores. Pois, estes são, com efeito, agraciados,
e não credores do Todo-poderoso.
Pr.
Cremilson Meirelles
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ERICKSON,
Millard J. Teologia sistemática. São
Paulo: Vida Nova, 2015.
GINGRICH,
F. Wilbur; DANKER, Frederick W. Léxico
do Novo Testamento – grego/português. São Paulo: Vida Nova, 1984. 228 p.
KISTEMAKER,
Simon J. Comentário do Novo Testamento
– Exposição da Segunda Epístola aos Coríntios. São Paulo: Editora Cultura Cristã,
2003.
VANGEMEREN,
Willem A. Novo dicionário internacional
de teologia e exegese do antigo testamento. Vol. 1. São Paulo: Cultura Cristã, 2011.
DEUS É FIEL A QUEM?
Reviewed by Pr. Cremilson Meirelles
on
17:45
Rating:
Perfeito. Pastor Cremilsom é fera.
ResponderExcluirObrigado, meu irmão.
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