Nos dias de hoje, mesmo diante do
avanço tecnológico, do maior acesso à educação e à informação, muitas pessoas
ainda sustentam preconceitos quando o assunto é adoção de filhos. Isso não se
restringe a um grupo específico, é característica de muitos, independente de
raça, naturalidade e credo. Há pessoas, inclusive, que, ao constatar a
infertilidade, optam por viver sem filhos, pois abominam a ideia de “criar
filhos de outros”. Justificam essa postura com uma série de lendas e mitos
acerca das conseqüências da adoção. Alguns, defendendo um raciocínio primitivo,
dizem que têm medo de adotar porque a criança pode herdar a má índole dos pais
(se por acaso, estes tiverem sido marginais), ou porque temem que, quando crescer,
o adotado possa voltar-se contra eles, chegando até a matá-los. Estes esquecem,
entretanto, que o filho biológico pode fazer o mesmo.
O
mais triste é que essa postura está presente também no meio evangélico. Nós,
que deveríamos viver a graça que pregamos, abraçamos os mesmos preconceitos
daqueles que não professam a fé em Cristo. Isto mostra que essa visão limitada
independe de cor, credo e posição social. Por isso, muitas pessoas deixam de
ser felizes e, consequentemente, fazer uma criança feliz, por conta dessas
barreiras. Parece que, para estes, adotar é o mesmo que reconhecer o fracasso;
é como se a criança não fosse seu filho de verdade.
Esse
raciocínio preconceituoso é alavancado por pregadores que insistem em
transformar em regra o que aconteceu com determinados personagens da Sagrada
Escritura. Entre estes os de maior destaque são Abraão e Sara, cuja
esterilidade foi revertida pelo Senhor. No entanto, naquela ocasião havia um
propósito específico para isso. Deus, através de meios miraculosos, estava
separando para si um povo, por intermédio do qual o Messias viria ao mundo.
Isso não significa, entretanto, que os mesmos milagres que foram realizados ao
longo desse processo revelatório devam, necessariamente, ocorrer na vida dos
cristãos. Pensar assim é contrariar a Escritura. Porquanto, quando o olhamos
todo o contexto bíblico, vemos que nem todas as estéreis foram curadas. Na
verdade, as Escrituras só narram a reversão da esterilidade das matriarcas de
Israel. Mas, será que só elas eram estéreis? Acredito que não. Foi justamente
por causa da presença da esterilidade no meio do povo que Deus inseriu como uma
das cláusulas contratuais de seu pacto com Israel, a garantia de fertilidade. É
óbvio, no entanto, que tal bênção dizia respeito ao contrato firmado com a
nação de Israel, não com a Igreja de Cristo.
Conquanto o
Reino de Deus seja constituído dos crentes do Antigo e do Novo Testamento, há
aspectos da aliança veterotestamentária que dizem respeito, exclusivamente, a
Israel. O sistema sacrificial e as leis civis, por exemplo, são específicos
para os israelitas daquele tempo. Há uma distinção entre aquele momento
histórico e o contexto do Novo Testamento. Acerca disso, Berkhof (1990, p. 569)
assevera:
A igreja do Novo Testamento e a da
antiga dispensação são essencialmente uma só. No que se refere à sua natureza
essencial, ambas consistem de crentes verdadeiros, e tão somente de crentes
verdadeiros. E, em sua organização externa, ambas representam uma mistura de
bons e maus. Contudo, diversas mudanças importantes resultaram da obra
realizada por Jesus Cristo. A igreja foi separada da vida nacional de Israel e
obteve uma organização independente. Em conexão com isto, os limites nacionais
da igreja foram eliminados. O que até essa época tinha sido uma igreja
nacional, agora assumiu caráter universal.
Os
termos do contrato firmado com Israel eram os estatutos da Lei. Por isso, “na
aliança do Sinai, Israel faz o juramento, e a obrigação é obediência às
estipulações da aliança” (LASOR, 1999, p.79). Por outro lado, no Novo
Testamento, há uma aliança particular do indivíduo com Cristo, que o insere na
Igreja. A diferença, entretanto, está nos termos do contrato neotestamentário,
pois este só possui um termo: o amor. Deus deixa de tratar com a nação para
tratar com o indivíduo. Acabaram os limites nacionais. Por isso, há uma série
de ordenanças e cláusulas contratuais veterotestamentárias que não se aplicam a
nós. Veja, por exemplo, que a promessa de que não haveria estéril em Israel é
proferida no mesmo contexto em que se fala das nações que Deus os ajudaria a
destruir. É óbvio que isso diz respeito a Israel!
Mas se diligentemente ouvires a sua voz, e fizeres
tudo o que eu disser, então serei inimigo dos teus inimigos, e adversário dos
teus adversários.
Porque o meu anjo irá adiante de ti, e te levará aos amorreus, e aos heteus, e aos perizeus, e aos cananeus, heveus e jebuseus; e eu os destruirei.
Não te inclinarás diante dos seus deuses, nem os servirás, nem farás conforme às suas obras; antes os destruirás totalmente, e quebrarás de todo as suas estátuas.
Porque o meu anjo irá adiante de ti, e te levará aos amorreus, e aos heteus, e aos perizeus, e aos cananeus, heveus e jebuseus; e eu os destruirei.
Não te inclinarás diante dos seus deuses, nem os servirás, nem farás conforme às suas obras; antes os destruirás totalmente, e quebrarás de todo as suas estátuas.
E servireis ao Senhor vosso Deus, e ele abençoará o
vosso pão e a vossa água; e eu tirarei do meio de vós as enfermidades. Não
haverá mulher que aborte, nem estéril na tua terra; o número dos teus dias
cumprirei (Êxodo 23.20-26).
Quando nos despimos das idéias prontas
e requentadas utilizadas por proclamadores de clichês, conseguimos enxergar o
que deveria ser evidente: a esterilidade é propósito divino. Basta olhar
atentamente para as narrativas que tratam do tema. Nelas, as estéreis são
instrumentos para o enaltecimento das origens de Israel, visto que seus
patriarcas, profetas e heróis são gerados por ex-estéreis. A esterilidade, na
verdade, é o que dá ocasião para a ação de Deus. Talvez, por isso, ela não seja
contada entre as maldições que alcançariam Israel caso abandonassem o Senhor.
Ainda que as punições enumeradas para essa transgressão sejam terríveis, as
mulheres de Israel continuariam a dar à luz (Dt 28.53). Há situações,
entretanto, que a esterilidade, embora não seja solucionada, é instrumento do
Senhor. Um exemplo disso é o caso de Termutis, filha de Ramsés II, que, por não
poder ter filhos, decidiu adotar Moisés (Ex 2.1-10). Se não fosse a esterilidade
dela, como o libertador de Israel poderia sobreviver? Deus a fez estéril para
que ela pudesse ser bênção na vida de Moisés, proporcionando-lhe melhores
condições de vida, dando-lhe o status necessário para que pudesse entrar
e sair livremente do Egito, além da instrução de excelência oferecida aos
príncipes egípcios.
Se
você enfrenta a esterilidade, não se ache o pior do mundo ou reclame com Deus.
Esta pode ser a oportunidade de proporcionar a uma criança o mesmo que Termutis
proporcionou a Moisés. Você tem a chance de interromper o processo de
marginalização de uma criança, e transformá-la em um cidadão de bem. A adoção
te concede esse privilégio. Não vivemos mais no Antigo Testamento! Não somos
Abraão e Sara! Deus tinha um propósito específico para a vida deles. Você já
parou para pensar qual o propósito que Ele tem para sua vida? De repente, Ele
quer te usar como instrumento para salvar uma vida que se encontra à deriva nos
rios do descaso, presa ao cesto das limitações sociais, esperando que você a
salve para que ela possa fazer a diferença na sociedade.
Na
cultura egípcia, se Moisés não tivesse sido adotado seu destino seria o mesmo
que o de seu povo, a escravidão. Da mesma forma, na atualidade, muitas crianças
têm trilhado as sendas da escravidão; são desprezadas, humilhadas,
marginalizadas, usadas. Para estas, a única chance de mudança é a adoção. Mesmo
diante desse quadro, casais inférteis permanecem impassíveis, esperando que,
tal como ocorreu com Abraão e Sara, aconteça com eles.
A adoção é um ato de graça,
semelhante ao que Deus fez conosco. Afinal, somos filhos dEle por adoção (Gl
4.4,5). O próprio Jesus, inclusive, foi adotado por José, marido de Maria.
Este, inclusive, é o maior exemplo humano de amor relacionado à adoção. Não
havia nada que José pudesse dar a Jesus que Ele não tivesse. Ora, todas as
coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez (Jo 1.3).
Mesmo assim, o carpinteiro de Nazaré, deu a Jesus o que tinha de melhor: sua
profissão. Isto pode ser verificado em Marcos 6.3, onde Jesus, após a morte de
José, é reconhecido como carpinteiro, e não como “filho do carpinteiro”. Isto
porque, sem dúvida, ele exercia bem sua profissão. Que maravilha! José gastou
tempo com Jesus, ensinando-lhe os detalhes da carpintaria. Cabe salientar,
entretanto, que o carpinteiro, naquela época, não era tão especializado quanto
hoje. Seu trabalho abrangia carpintaria, marcenaria, arquitetura e engenharia.
Isto é, seu aprendizado exigia esforço físico e intelectual. Certamente, isso tomou
grande parte do tempo de José, ou seja, ele passou bastante tempo com seu
filho. Além disso, a transmissão da profissão constitui uma forte evidência de
que José o tratou como seu filho genuíno, pois como afirma de Vaux (2004, p.
73) “os ofícios eram em geral hereditários e as técnicas se transmitiam na
oficina familiar”. Os rabinos costumavam dizer: “quem não ensina a seu filho um
oficio útil, o cria para ser ladrão”. José queria ver o bem de Jesus. Afinal,
era o seu filho.
Há quem diga, porém, que existe o
perigo do filho adotado voltar-se contra os adotantes, visto que traz em seus
genes a maldição que acompanhava os pais biológicos. Que absurdo! A Bíblia não
dá respaldo nenhum para crermos em “maldições hereditárias”. Pelo contrário, em
Ez 18, o profeta combate esse pensamento. O que se transmite hereditariamente
são os efeitos do pecado e não o pecado, pois este, segundo a Bíblia, não é
hereditário, é de responsabilidade pessoal (Ez 18: 20-22). Isso é atestado no
mesmo livro em que se encontra o texto predileto do defensores dessa tese: Dt
5.9. Em Dt 24:16, a Bíblia diz: “Os pais não morrerão pelos filhos, nem os
filhos pelos pais: cada qual morrerá pelo seu pecado”.
Amado, bandidagem não se transmite geneticamente! A índole do
indivíduo depende dos relacionamentos que ele tem ao longo do processo de
formação de seu caráter. Conforme explica Josgrilberg[1],
“[...] sem o outro não somos nada. Nossa constituição tem o ponto focal na presença
do outro. Nascemos da vida dos outros fisiologicamente, psicologicamente, culturalmente,
e mesmo religiosamente [...]”. Isto é, o sujeito é formado a partir dos
relacionamentos. Pensar que uma criança adotada evidenciará, cedo ou tarde, os
maus costumes dos pais biológicos é uma grande asneira. Quantas vezes, vemos
pais bons com filhos ruins. Absalão, por exemplo, se voltou contra Davi, seu
pai, e não era adotado. Amom, seu outro filho, estuprou a própria irmã, e não
era adotado. Suzane Richthofen, um caso mais recente, mesmo sendo filha
biológica assassinou os pais. Logo, deixar de adotar por esses motivos é, no
mínimo, crueldade.
Portanto,
deixemos os preconceitos de lado e sejamos instrumentos divinos para a
transformação de vidas, tanto socialmente quanto espiritualmente. Independente de
cor, idade ou origem, vamos simplesmente amar. Como afirma o dito popular “pai
é quem cria”. Gerar biologicamente não torna ninguém pai de verdade. Até
porque, muitos geram crianças que passam a maltratar com o passar do tempo.
Precisamos fazer a diferença neste mundo tenebroso, não somente indo ao templo,
mas mostrando que somos templo; e templo não é lugar de discriminação. Em suma,
ame de verdade!
Pr. Cremilson
Meirelles
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Cultura Cristã, 1990.
JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. 9 ed. Rio de Janeiro: CPAD. 2005.
JOSGRILBERG, Rui de Souza. A Constituição do Sujeito Ético. Revista Caminhando v. 13, n. 21, p. 41-59, jan-mai, 2008.
LASOR, William S; HUBBARD, David A; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999. 860 p.
VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. 9 ed. Rio de Janeiro: CPAD. 2005.
JOSGRILBERG, Rui de Souza. A Constituição do Sujeito Ético. Revista Caminhando v. 13, n. 21, p. 41-59, jan-mai, 2008.
LASOR, William S; HUBBARD, David A; BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999. 860 p.
VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004.
EU NÃO SOU ABRAÃO E MINHA ESPOSA NÃO É SARA
Reviewed by Pr. Cremilson Meirelles
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Louvado seja o nome do Senhor Jesus Cristo!!! Deus te abençoe meu irmão, seu ponto de vista (devidamente referenciado) exposto aqui realmente é maravilhoso, com certeza, inspirado por Deus.
ResponderExcluirEspero sinceramente que, o Espírito Santo de Deus, e, irmãos e irmãs guiados por Ele, possam ser direcionados para esta esclarecedora mensagem, e que também, possa ser formada uma rede solidária por meio de indicações de leitura, pois entendo que, muitos carecem desta leitura!!!
Parabéns, que Deus continue inspirando a tua mente e coração!!!
Reginaldo e Família.
Obrigado, meu irmão. Essa também é nossa expectativa. Que Deus continue a abençoá-lo!
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