Este, sem dúvida, é um
dos textos mais polêmicos e obscuros da Escritura. Por isso, muitos preferem
manter distância desse episódio tão confuso, evitando analisá-lo ou comentá-lo.
Por outro lado, há quem goste da história, visto que, aparentemente, dá margem às
práticas espiritualistas. Mesmo no âmbito do Cristianismo, há uma série de
controvérsias a esse respeito. Uns esposam a ideia de que a vinda do profeta
Samuel, no relato, se trata de uma manifestação demoníaca; outros, entretanto,
defendem que Deus teria aberto uma exceção e permitido que o espírito de Samuel,
de fato, falasse por meio da pitonisa. Contudo, a despeito das muitas
interpretações relativas ao incidente narrado em 1Sm 28, pretendo neste artigo
mostrar um perspectiva que faça justiça ao texto bíblico, levando em conta seu
contexto imediato e situacional.
À primeira vista, o relato
parece confirmar a vinda de Samuel do mundo dos mortos, atendendo ao chamado da
pitonisa. No entanto, antes de qualquer assertiva temerária, é necessário
entender qual a função do texto no seu contexto. Ora, 1Sm 28.3-25 tem como
propósito comunicar uma vez mais a rejeição de Saul e reafirmar a escolha de
Davi para substituí-lo. Isto fica bem claro quando, ao contrário de Davi, que
nos momentos cruciais recebia a instrução de Yahweh (1 Sm 23.2.4.9-18; 30,7-20;
2 Sm 2.1; 5,19.23), Saul é abandonado (1Sm 28.6). Segundo o texto, o rei
tentara de todas as maneiras ouvir a voz divina (sonhos, urim, tumim, profetas)
sem lograr êxito. Entrementes, quando o texto assevera que Deus não respondeu
aos apelos de Saul, o termo hebraico empregado (҅anah) aparece no tempo completo, transmitindo a ideia de uma ação
já concluída. Isto é, Deus já decidira não respondê-lo. Portanto, dali para frente,
de maneira alguma lhe daria resposta. Nem por revelação sacerdotal (Urim e
Tumim), pessoal (sonhos) inspiracional (profetas), e, muito menos,
espiritualista (pitonisa).
É necessário frisar
também que o próprio Saul fora responsável pela eliminação dos meios de acesso ao
divino, pois matara 85 sacerdotes de Yahweh (1Sm 22.6-19). Na verdade, ele
eliminara toda e qualquer forma de comunicação com o sobrenatural, uma vez que
até as ҆oboth[1]
e os yid ҅onim[2]
(1Sm 28.3) foram expulsos em seu reinado.
Além disso, o profeta Samuel já havia morrido. Isto é, as portas do sagrado
estavam fechadas para Saul. É claro, porém, que, possivelmente, a expulsão dos
adivinhos e encantadores fosse uma tentativa do rei de, em vão, buscar o favor
divino (Dt 18.9-14).
Diante do silêncio
divino, Saul decidiu, em um ato de desespero, lançar mão de um último recurso.
Este, no entanto, ia de encontro à sua atitude anterior, visto que decidira
consultar a classe que ele mesmo criminalizara. Para tanto, solicitou ajuda aos
seus servos, pedindo que encontrassem mulher possuidora de um obh (1Sm 28.7). Aqueles, prontamente,
lhe informaram sobre a notável médium que residia em En-Dor, cidade Cananeia
pertencente ao território da tribo de Manassés, que distava cerca de 7 Km de
Gilboa, onde o exército de Israel estava arregimentado. A mulher mencionada,
certamente, tinha uma boa reputação no tocante ao contato com os mortos. Não
foi à toa que seus criados a recomendaram. Saul, ansioso por ouvir alguma
orientação do “mundo espiritual”, seguiu, então, rumo a En-dor, a fim de, mais
uma vez, ouvir aquele que, por algum tempo, fora seu mentor.
É óbvio que, para não
contradizer suas ordens, o rei precisou se disfarçar. Afinal, ele não queria ser
visto pelo povo descumprindo uma de suas leis. Entretanto, isso não foi
suficiente, pois o texto dá indícios de que a pitonisa, desde o princípio,
desconfiou da verdade. É bem verdade que não seria muito difícil suspeitar,
visto que um homem muito alto, disfarçado, acompanhado dos servos do rei,
procurando-a na calada da noite, só podia ser o próprio monarca. Isto porque,
como podemos ver em 1Sm 9.1,2 e 10.23, Saul era o homem mais alto dentre os
israelitas. Além disso, assim que Saul chega, a mulher menciona a atitude do
rei para com os necromantes, asseverando que não poderia fazer o que lhe fora
pedido (1Sm 28.9). Ora, sem dúvida, ela devia consultar os mortos
constantemente, independente do perigo de ser morta. Se não fosse assim, os
criados do rei não a conheceriam (1Sm 28.7). Decerto, ela diz não ser possível
realizar a consulta, por ter suspeitado que o “visitante misterioso” era Saul.
As suspeitas da
pitonisa são confirmadas quando o próprio Saul garante que nenhum mal lhe
sucederia (1Sm 28.10). Quem, senão o rei poderia garantir uma coisa dessas?
Soma-se a isso o fato de Saul lhe pedir que fizesse subir a Samuel (1Sm 28.11).
Porquanto, levando-se em conta que o relacionamento de Samuel e Saul era
conhecido por todos, qualquer cidadão concluiria, naturalmente, que um homem
alto, acompanhado dos servos do rei, que diz que quer falar com Samuel, e que garante
a proteção e liberdade da necromante, era Saul. Tantas coincidências não
poderiam ser aleatórias!
Mesmo assim, a pitonisa
precisava que ele se revelasse, para garantir a sua segurança, pois sem a
revelação não haveria compromisso. Isto é, se Saul permanecesse disfarçado, ela
correria risco de morte. Sendo assim, sabendo que ele gostaria de falar com
Samuel, ela arma uma cena (grita), dizendo que viu Samuel e declarando a Saul
que sabe quem ele é (1Sm 28.12). Toda essa encenação tinha o propósito de
isentá-la de qualquer punição, e dar credibilidade ao que estava fazendo.
Contudo, fica uma
pergunta: Como explicar o fato de que o texto declara, literalmente, que a
mulher “viu” Samuel? Para respondê-la, porém, é preciso analisar a expressão no
idioma original, o hebraico. À luz deste, podemos concluir que a afirmação, de
fato, é literal, porque o autor sacro utilizou o verbo hebraico rā ҆â, que significa ver, olhar,
inspecionar, ter visão. A princípio, parece que essa informação reforça a ideia
do diálogo entre o profeta e o rei. No entanto, segundo Philbeck Jr. (1986)
alguns manuscritos gregos trazem Saul, em vez de Samuel. Isto é, dentro dessa
ótica, a mulher teria se assustado ao perceber que estava diante do mesmo rei
que havia proibido a prática necromante.
Inobstante, ainda que
não se leve em conta a observação acima, precisamos concordar que a história
descrita no texto fora relatada por uma testemunha ocular. De outra maneira,
como poderíamos ter certeza dos fatos ali narrados? Ora, fora a pitonisa, estavam
ali apenas o rei e seus criados. Com certeza, um deles contou o ocorrido a alguém.
Esse relato, sem dúvida, foi influenciado por suas crenças, que não eram nem um
pouco ortodoxas. Isto porque, o povo de Israel tinha uma forte inclinação ao
paganismo. Por que Saul teve de expulsar os médiuns? Porque eles viviam
tranquilamente entre o povo. Eles vivenciavam um sincretismo religioso. Ademais, a
Bíblia relata que era comum a existência de estrangeiros dentre os servos do
rei (1Sm 21.7; 26.6; 2Sm 23.25-39). Destarte, a única conclusão razoável é que
o testemunho da Escritura expressa aquilo que a pitonisa disse ter visto, com o
que, possivelmente, concordaram Saul e seus criados. Isto, no entanto, não enfraquece
o texto bíblico. O episódio narrado é parte da revelação divina. Porém, tal
como ocorre com os discursos dos amigos de Jó, as palavras de Satanás (Mt
4.1-11), a fala da mulher de Tecoa (2Sm 14.2-21), eram palavras e conceitos humanos.
É Preciso considerar também a natureza do texto, ou seja, é uma narrativa, não um
escrito doutrinário.
Quanto ao diálogo entre
Samuel e Saul, o que supostamente é dito pelo “profeta”, todo mundo já sabia. A
condição de Saul e o que Samuel pensava dele, era de domínio público. A
pitonisa apenas repete aquilo que Samuel já havia falado (1Sm 15.22–28; 28.17).
Além do mais, o próprio Saul diz a “Samuel” que os filisteus estavam guerreando
contra ele. Diante disso, da loucura de Saul e do fato de que Davi já havia
sido ungido rei, seria fácil prever o futuro. Em adição, vale salientar que é
Saul quem “entende” que se trata de Samuel (1Sm 28.12). Isto é, o rei, sem
vê-lo, concluiu que era Samuel. Até porque, conforme a narrativa, apenas a
mulher diz que vê (1Sm 28.13,14). Ela simula um “transe” e representa uma
espécie de psicofonia, dizendo ser Samuel o interlocutor. Uma completa farsa.
Visto isso, acredito
que o episódio em pauta é um registro histórico da ação de mais uma charlatã.
Isso fica bem claro quando analisamos as predições do suposto Samuel, uma vez
que destoam frontalmente da realidade. Sua afirmação de que Saul seria entregue
nas mãos dos filisteus, por exemplo, não se cumpriu, visto que 1Sm 31.4 a
Escritura informa que Saul cometera o suicídio, e, em 31.11-13, é dito que o
corpo de Saul foi parar nas mãos dos habitantes de Jabes-Gileade.
Não obstante, conquanto
o relato contido em 2Sm 1.1-10 discrepe dos textos supracitados, é necessário
frisar que o registro não expressa a realidade do que aconteceu a Saul em seus
últimos momentos de vida. Trata-se, contudo, da reprodução da história
inventada por um amalequita que esperava receber uma recompensa do novo rei e
gozar de prestígio perante o povo por ter assassinado o rival de Davi.
Possivelmente, o homem passara por perto do lugar onde Saul morrera e,
reconhecendo o cadáver, furtou sua coroa e bracelete antes que os filisteus o
encontrassem.
Outro erro do “fantasma
Samuel” foi declarar que Saul e seus filhos morreriam no dia seguinte (1Sm
28.19). Isto porque, pelo menos três filhos do rei permaneceram vivos, a saber:
Is-Bosete (2Sm 2.8-10), Armoni e Mefibosete (2Sm 21.7,8). Nem Saul morreu no
dia seguinte conforme fora “profetizado” (1Sm 28.19). Sublinha-se, inclusive,
que a mulher emprega o termo mahar,
que significa, literalmente, amanhã. Não se tratava de um sentido figurado, mas
do próximo amanhecer. Todavia, Saul morreu, mais ou menos, uns 17 dias depois. Esta
assertiva é confirmada quando analisamos a história que se segue. Porquanto, no
capítulo 29, o autor sacro destaca que, antes do ataque derradeiro, os
filisteus despediram Davi, por pensarem que ele lutaria a favor de Israel (1Sm
29.1-11). Em seu retorno a Ziclague, Davi gastou 3 dias (1Sm 30.1) e mais um
dia na preparação para a nova expedição; de Ziclague até o ribeiro de Besor,
uma viagem de cerca de 30 Km, o filho de Jessé e sua tropa despenderam mais um
dia. Além disso, em 1Sm 30.13 é dito que os amalequitas estavam três dias a
frente de Davi e seus companheiros, visto que este era o tempo que o homem
egípcio havia sido deixado para trás. Em adição, o texto afirma que um dia
inteiro foi empregado na batalha contra os inimigos (1Sm 30.16,17). Em suma,
três dias foram gastos até Ziclague, um dia de preparação, um dia até Besor,
três dias até o acampamento amalequita, um dia de guerra e mais oito dias para
retornar, totalizando 17 dias. Mais à frente, em 2Sm 1.1,2, o autor sacro
assevera que a notícia a respeito da morte de Saul só chegou depois de três
dias que Davi tinha retornado a Ziclague. Ora, a distância entre Gilboa e
Ziclague era percorrida em três dias. Assim, a conclusão lógica é que, após 17
dias da “profecia”, Saul, enfim, morreu.
Portanto, não há como
concordar com a interpretação de que Deus abriu uma exceção, permitindo que
Samuel retornasse do “mundo dos mortos” só para repetir aquilo que já dissera a
Saul. Qual teria sido a razão disso? Por que Deus faria Samuel contrariar a
doutrina que ele mesmo pregara (1Sm 15.23)? Por que Samuel, conhecendo a lei
(Lv 20.6, 27), teria participado desse evento? Além do mais, se Deus tivesse autorizado
a manifestação, por que Saul morreria por ter feito algo que Deus aprovara (1Cr
10.13-14)? Alíás se fosse Samuel o veículo transmissor, seria o próprio Deus
falando. Deus falaria através de um morto, mesmo proibindo essa prática (Dt
18.9-14)? Seria uma mediação dupla? Deus usa Samuel e Samuel usa a mulher. Que coisa
esquisita!
Pr.
Cremilson Meirelles
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KIRST, Nelson, et al.
Dicionário hebraico-português e aramaico-português. 18 ed. São Leopoldo:
Sinodal, 2004. 305 p.
PHILBECK JR., Ben. F.
Comentário Bíblico Broadman: 1Samuel -
Neemias. Tradução de Israel Belo
de Azevedo. 2 ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1986.
SHIMIDT,
Alaid Schiavone. Pequena Enciclopédia Bíblica de Temas
Femininos. São Paulo: Arte Editorial, 2007.
SILVA,
Ruben Marcelino Bento da. ASSOMBRAÇÕES NA BÍBLIA JUDAICA: Estudo
classificatório sobre tradições folclóricas de demônios e fantasmas difundidas
no Antigo Israel e subjacentes aos textos hebraicos canônicos. 2012. 122 p. Dissertação
(Mestrado em Teologia) - Escola Superior de Teologia, São Leopoldo.
SAUL E A PITONISA
Reviewed by Pr. Cremilson Meirelles
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