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FUTEBOL E RELIGIÃO

Sem dúvida, a religiosidade humana, embora seja uma das características essenciais da humanidade, é um dos comportamentos mais criticados pela sociedade. Há quem aponte, inclusive, toda prática religiosa frequente como fanatismo ou “bitolação”. Contudo, os defensores desse conceito, não compreendem o que, na verdade, significa fanatismo. Até porque, se tivessem esse conhecimento, saberiam que fanatismo é uma atitude que não se restringe ao âmbito religioso.

A palavra fanatismo vem do latim fanaticus, que significa "o que pertence a um templo". Isto porque, em latim, o termo equivalente à palavra portuguesa templo é fanum, daí fanaticus. Conquanto o termo tenha se originado a partir da observação do comportamento religioso, com o passar do tempo adquiriu uma conotação que transcende os limites da religião.

O indivíduo fanático ocupa o lugar de escravo diante do senhor absoluto, que, pode ser uma divindade, um líder mundano, uma causa suprema ou uma ideologia. Existe fanatismo por uma raça, um time de futebol, por um partido político, sobretudo por ideologias revolucionárias. Este comportamento normalmente é caracterizado por extremos que, na maioria das vezes, extrapolam a dimensão racional.
            Com base nessas informações, cabe-nos questionar: quem julga todo indivíduo religioso como fanático estaria isento, por não aderir a uma religião, do fanatismo? Conforme explicamos acima, nenhum ramo do comportamento humano está isento dessa anomalia. No entanto, a fim de tornar mais explícita a relação entre o fanatismo e os segmentos arreligiosos da sociedade, escolhemos o futebol como alvo de nossa análise. Por conta disso, neste artigo apontaremos os aspectos do âmbito futebolístico que são inerentes à esfera religiosa. Isto com o fito de mostrar que, muitas vezes, os críticos possuem as mesmas características dos criticados e, a partir daí, desnudar o fanatismo dos apaixonados por futebol.

O primeiro ponto que quero ressaltar é a presença do transcendente no contexto do futebol. Porquanto, se analisarmos de maneira mais detida perceberemos que, para o torcedor, há algo que está além dele, que ultrapassa os limites temporais e espaciais, a saber, o time. Os indivíduos vêm e vão, mas o time permanece carregando em sua essência características que independem dos jogadores. Por exemplo: os torcedores do Flamengo afirmam que em finais o Flamengo sempre ganha. Como eles podem afirmar isso se os jogadores não são os mesmos?!? Ora, a identidade de um time é determinada por seus jogadores e por seu técnico, assim como a identidade de uma igreja é definida por seu pastor e seus membros. Sabemos, contudo, que há uma constante rotatividade desses componentes. Logo, não é possível que, mesmo com pessoas diferentes, as mesmas características sejam conservadas. Isso é um absurdo! Cada indivíduo tem uma maneira de pensar e agir diante das mais variadas circunstâncias. Não é o fato de vestir a camisa de um clube, que com outro elenco realizou tais façanhas, que capacitará alguém a realizar os mesmos feitos ou assumir a mesma postura. Pensar dessa maneira seria atribuir uma personalidade ao time em si, como se ele existisse independente dos indivíduos que o compõem. Sendo assim, esse Ente, chamado time, passa automaticamente a gozar da tão sonhada juventude eterna, visto que ele conserva suas características originais, independente do avançar do tempo. É uma espécie de “transcendentalização” da instituição.

Essa postura do torcedor evidencia diversos aspectos inerentes ao homem religioso. Um deles é o mito, cuja conservação é essencial para manutenção do pensamento apresentado acima. Isto é, os feitos marcantes, ocorridos no princípio da história do time (in illo tempore), que produziram a identidade conhecida hoje, são transmitidos oralmente, de pai para filho, a fim de fundamentar as concepções atuais. As coisas são assim hoje, porque os “deuses” (Zico, Pelé, Garrincha, etc) as fizeram assim. O Vasco da Gama, por exemplo, é considerado o time da virada porque ao longo da história do clube (no tempo mítico) muitos resultados adversos foram revertidos. No entanto, volto a perguntar: como tal característica pode ser conservada, se os jogadores não são os mesmos?

Outrossim, tal como ocorre nas religiões, há uma tentativa constante de voltar a esse tempo mítico, ao tempo primordial, glorioso por excelência. Isto ocorre através dos ritos, ou seja, dos jogos, que constituem uma busca incessante pelo mito, pelo tempo glorioso. Não obstante, assim como acontece no âmbito religioso, esse tempo, embora possa ser alcançado mediante o rito (jogo), nunca permanece. Há a necessidade de uma eterna repetição do rito para que se tenha acesso ao mito, o que denota uma aspiração pela eternização do mito, isto é, por um tempo no qual os altos e baixos cessem (morte x renascimento, natureza decaída x vida santificada etc) e o time desfrute de um período, sem fim, de glória, de plenitude.

Outra semelhança entre futebol e religião é a existência de espaços sagrados. Os estádios, por exemplo, se enquadram perfeitamente nessa categoria. Para o torcedor o estádio é o local onde a “magia” do futebol acontece. É lá que ele pode se unir a outros que professam a mesma fé (na vitória do time) e contemplar as pessoas sagradas (os jogadores) se conectarem com o Ente (o time), deixando de ser meros indivíduos, para se tornarem “o time”.

É claro, entretanto, que tal como se dá no contexto religioso, no futebol também existe a necessidade de mediação, pois o fiel (o torcedor) não pode ter contato com os jogadores, não podendo, portanto, saber o que, exatamente, está acontecendo. Por conta disso, surge a figura do narrador e do comentarista (mediador entre o jogo e os torcedores), que explica aquilo que não pode ser percebido pelo público (assim como o líder religioso explica os ritos e as Escrituras Sagradas). Trata-se, basicamente, de uma figura sacerdotal. 

              No momento da partida, aqueles que se encontram no estádio (templo) são envolvidos não só pelo que acontece dentro do campo, mas, principalmente, pelo que ocorre fora dele. Porquanto, os indivíduos passam a fazer parte da massa. A pessoa ao lado deixa de ser um desconhecido e se torna um componente do grupo que torce para o mesmo time (semelhante ao que ocorre nas igrejas). Por conta disso, uma multidão, composta de pessoas aparentemente sem vínculo no cotidiano, passa a demonstrar um comportamento uniforme, concordando com as tradições relativas ao time e manifestando as mesmas atitudes. Nos momentos de maior excitação, os componentes da torcida gritam frases que denotam o anseio pela vitória, entoam canções (louvores) de exaltação ao time (o sagrado), além de pular e gritar diante de situações de alegria (tal como ocorre nos cultos neopentecostais).
              O mais interessante é que podemos encontrar nesse comportamento até mesmo aquilo que as religiões definem como blasfêmia. Por exemplo: se alguém, na torcida do Flamengo, se alegrar com um gol do adversário, corre o risco de não sair de lá vivo, pois blasfemou, merecendo, portanto, o pior castigo. Há também as seitas (o termo seita, derivado do latim sequi, diz respeito aos segmentos de uma religião e não a grupos de fanáticos), isto é, as torcidas organizadas, pois, conquanto haja uma torcida imensa, sempre há indivíduos que querem criar grupos separados. O Vasco da Gama, por exemplo, tem a Força Jovem, a TOV (Torcida Organizada do Vasco), a Ira Jovem, a Mancha Negra, Torcida Vila Vasqueire etc. Esse fenômeno é semelhante ao que ocorria no judaísmo neotestamentário, que contava com três seitas: o farisaísmo (fariseus), saduceísmo (saduceus) e o essenismo (essênios). Vale ressaltar também que as críticas feitas aos ídolos do clube, quando vinda de um torcedor, podem ser encaradas pelos outros como heresia (um pensamento que surge no seio da religião, mas que contraria sua essência). 

              Ademais, a maneira pela qual o indivíduo faz “opção” pelo time que torcerá é idêntica ao que ocorre em muitas religiões (o catolicismo, por exemplo), isto é, uma transmissão hereditária. É evidente que há exceções a essa regra, porém, de um modo geral, o time defendido pelo indivíduo é produto de seu relacionamento familiar. Poucas pessoas fazem uma verdadeira escolha. O avô, o pai ou o tio, normalmente iniciam o menino na tradição futebolística da família desde a mais tenra idade, levando-o aos estádios, lhe presenteando com a camisa do clube, assistindo aos jogos em casa, ensinando a ele que “seu time” é “o melhor” (para torcer). Assim, a paixão pelo time vai passando de geração a geração.
               Mas o que é o time? Melhor ainda: quem é o time? Como mencionamos, há uma tendência de enxergar o “time” como algo maior do que o clube, maior do que o indivíduo, maior, até mesmo, que o tempo, algo com personalidade própria. Esse “algo” é representado por um símbolo, um brasão. Esse símbolo identifica quem pertence ao mesmo grupo. É uma espécie de totemismo moderno, onde o grupo está vinculado pelo brasão de seu time, o que lhes proporciona não só afinidade, mas identificação. Por causa disso, o símbolo é ostentado através de bandeiras, camisas, adesivos, tatuagens.

Além de todas essas características religiosas há também no ambiente futebolístico, a ideia do adversário igualmente transcendente, a saber, o outro time. Esse Ente é revestido dos mesmos atributos do “nosso time”, e, em muitos casos, trata-se do eterno inimigo, visto que há uma rivalidade que somente pode ser justificada quando o tempo mítico é levado em conta (o que aconteceu no princípio). Se perguntássemos a algum torcedor qual a razão da rivalidade entre Vasco e Flamengo, por exemplo, é bem provável que ele dissesse: “sei lá, sempre foi assim!” Na verdade, essa rivalidade teve início muito antes de você existir, nossa geração a herdou da tradição familiar. Por isso, embora nem saibamos o porquê, nós odiamos o outro time. É uma espécie de fé cega. “Não sei o porquê, mas eu faço”.

A despeito dessas similaridades, a religião, mormente o protestantismo, é acusado constantemente de manipular seus fiéis. Ainda que essa acusação se baseie no comportamento de alguns poucos “líderes” religiosos, normalmente, de linha neopentecostal, é importante sublinhar que no futebol ocorre o mesmo. Os fiéis que lotam os estádios são vistos pelos organizadores apenas como “pagantes”. Pelo menos, essa é a expressão utilizada para informar o número de presentes. Isto porque, é isso que eles são: pagantes. Os “cartolas” não estão interessados na paixão pelo clube, na “magia do futebol” ou no bem-estar dos torcedores, mas única e exclusivamente no lucro. Muitas vezes, o milagre é realizado (como aconteceu com o Fluminense em 2000, na Copa João Havelange, quando saiu da terceira divisão e foi direto para primeira para disputar o título!) para atrair mais fiéis aos estádios (templos), com o fito de auferir mais lucro. O fato do Flamengo se dar bem nas finais, normalmente atribuído a uma manifestação mística (é a única coisa que pode explicar, já que os jogadores não são os mesmos) que transcende espaço e tempo, é mais uma jogada financeira, pois, já que ele possui a maior torcida, é muito mais vantajoso que ele seja campeão. Portanto, qualquer time que for para a final com o Flamengo já tem a derrota praticamente decretada. É claro que o que vai determinar isso, logicamente, são os números. Porquanto, se for verificado que uma vitória de outro time será mais lucrativa, é óbvio que isso ocorrerá. Há quem diga, entretanto, que é a torcida que empurra o time. No entanto, a torcida era mesma que, em 2001, quase viu seu time, em péssima fase, ser rebaixado para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro. Onde está o “poder da torcida”? Se torcida ganhasse jogo, a seleção da China era campeã mundial todo ano. 

           Vale salientar também que o próprio jogador, que às vezes se torna objeto de adoração, não está interessado na torcida (só se ela contribuir para sua convocação para seleção) e muito menos no time, mas se preocupa exclusivamente com sua carreira. Uma boa atuação é muito mais importante para ele do que a vitória de seu time, pois, só assim, a mídia o projetará mundialmente, viabilizando sua ida para o futebol europeu (o que lhe dará muito lucro). Mesmo assim, o fiel, cego por sua paixão, continua torcendo para que sua exploração continue e seja cada vez mais intensa. Até porque, quanto mais seu time ganhar, mais dinheiro ele terá de gastar com as camisas oficiais que, orgulhosamente, terá de ostentar (camisa ungida?), das assinaturas de TV a cabo que terá de fazer e ingressos caríssimos que terá de comprar.
            A partir daí, podemos perceber um sentimento oriundo do universo religioso presente no meio futebolístico, a saber, a fé. Isto fica patente na esperança alimentada pelos torcedores que lotam os estádios. Eles realmente creem que seu time vencerá mesmo que as circunstâncias digam o contrário. Por isso, sofrem esperando que seu time vá vencer no último instante. Vão para o estádio crendo que isso vai acontecer (é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que se não veem – Hb 11.1). Essa fé é defendida com ardor nos debates com torcedores de outros times.

É nesse contexto que brota o fanatismo. Haja vista que as pessoas passam a fazer tudo, supostamente em defesa de seu time. Agridem os torcedores do time adversário, fazem tatuagens permanentes, sofrem em filas intermináveis, acompanham seus times até nas localidades mais longínquas. Eu já conheci pessoas que jogam futebol todos os dias no seu horário de almoço no trabalho (no momento de maior calor!), jogam quando chegam em seus lares e depois ainda assistem as partidas televisionadas, mesmo que não sejam de seu time. Tem gente que assiste até o campeonato europeu. Isso sim fanatismo! Eu sou evangélico, Pastor, e não vou à igreja todos os dias. Leio livros não religiosos, vejo filmes seculares (desde que não contenham pornografia e violência excessiva), mas só pelo fato de ir à igreja frequentemente, três vezes por semana, quando falo do amor de Deus, sou chamado de fanático por pessoas que têm o comportamento mencionado acima, é mole?
 

Pr. Cremilson Meirelles

 

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