Introdução
Em
Atos 1 relata-se que os apóstolos, entendendo que o lugar de Judas tinha de ser
ocupado, elegeram Matias e o consagraram ao apostolado (At 1.21-26). Isso
ocorreu por iniciativa de Pedro, o qual além de afirmar que era “necessário” efetuar
tal escolha, destacou os requisitos para efetivá-la, quais sejam: ter convivido
com Jesus e os apóstolos em todo o tempo, desde o batismo de João até a
ascensão do Senhor aos céus (At 1.21,22). Esse indivíduo, junto com os outros
apóstolos, daria testemunho acerca da ressurreição de Cristo (At 1.22).
Todavia,
por mais que os apóstolos tenham orado antes (cf. At 1.12-14) e durante o
processo de escolha (cf. At 1.24,25), a fim de que a vontade de Deus fosse
feita, há quem pense que a consagração de Matias foi ilegítima. Conheço homens
de Deus que, com convicção, sustentam essa tese. Será que eles têm razão?
Seu
argumento principal é que, para ser apóstolo, era preciso que o indivíduo fosse
escolhido diretamente por Jesus. Uma exigência que, de acordo com eles, Matias
não cumpre. Eles acrescentam ainda que a afirmação de Apocalipse 21.14 de que o
muro da Nova Jerusalém tem “doze fundamentos e, neles, os nomes dos doze
apóstolos do Cordeiro”, inviabiliza a existência de treze apóstolos. Por conta
disso, concluem que só houve um apóstolo consagrado depois da morte de Judas:
Paulo de Tarso.
Conquanto
esse pensamento pareça fazer sentido, ele esbarra em, pelo menos, dois
problemas. O primeiro é que seus adeptos revogam algo que a Bíblia não revogou.
Porque, além de Atos 1.21-26 deixar claro que Matias foi consagrado ao
apostolado, não há um texto sequer que afirme que essa consagração não foi
válida. O segundo problema tem a ver com as declarações de Atos 2.14; 6.2 e
1Coríntios 15.3-8, as quais confirmam a existência de doze apóstolos antes do
chamado de Paulo.
Visto
isso, nas linhas abaixo, procuraremos expor as fragilidades dessa tese a partir
de respostas bíblicas aos problemas supracitados. Porém, é necessário salientar
que não pretendemos desqualificar os proponentes desse pensamento como exegetas
ou mesmo diminuí-los como homens de Deus. Com efeito, nosso objetivo é apenas expor
aquilo que acreditamos que a Bíblia diz.
1.
O relato da consagração de Matias contém evidências da ilegitimidade de seu
apostolado?
Em
relação ao primeiro problema, é importante frisar que sua enunciação não se trata
de um argumento a partir do silêncio[1], mas sim de uma referência
a algo que a Bíblia afirmou, mas não revogou. Com base nisso, entendemos que
para defender a ilegitimidade do apostolado de Matias, é necessário provar que
essa revogação ocorreu ou que a consagração dele nunca foi aprovada. Do
contrário, as bases dessa tese serão meras pressuposições.
Diante
dessa contestação, os que esposam essa posição se engajam na tarefa de
desqualificar cada um dos elementos presentes na consagração de Matias. O
primeiro alvo desse esforço é a liderança apostólica. Pois, consoante as
alegações desses teólogos, o fato de esse evento ter ocorrido antes do
derramamento do Espírito Santo comprova que os apóstolos não estavam sendo
dirigidos pelo Senhor. Uma evidência disso, conforme argumentam, seria o modus
operandi. Porquanto, o texto diz que eles escolheram Matias mediante o lançamento
de sortes (cf. At 1.26). Algo que nunca mais ocorreu após a descida do Espírito
Santo.
Não
obstante, cumpre salientar que, desde o Antigo Testamento, a prática de “lançar
sortes” era observada com o propósito de conhecer a vontade divina. Isto é, não
era uma espécie de aposta, como se costuma pensar. Na verdade, era um
expediente através do qual Deus comunicava suas decisões.
Esse
procedimento era aprovado pelo Todo-Poderoso. Tanto, que Ele ordenou que a
terra prometida fosse dividida por meio do lançamento de sortes: “Todavia, a
terra se repartirá por sortes; segundo os nomes das tribos de seus pais, a
herdarão” (Nm 26.55). Outrossim, Ele permitiu que ofícios e funções no templo
fossem definidos por meio desse método (cf. 1Cr 24.5,31).
Ademais,
vale sublinhar que, antes de lançarem sortes, os apóstolos oraram rogando ao
Senhor que revelasse qual dos candidatos havia escolhido para compor o colégio
apostólico (Atos 1.24). Ou seja, eles acreditavam que Deus já tomara sua
decisão; o ato de “lançar sortes” apenas a tornaria conhecida. Pois, como diz
Provérbios 16.33, “a sorte se lança no regaço, mas do SENHOR procede toda
decisão” (Pv 16.33).
Em
suma, como afirma Lopes, “a escolha de Matias através de sortes preenchia o
requisito de ter sido chamado diretamente pelo Senhor”[2]. Isso não significa que
esse método seja normativo. Até porque, essa foi a última vez que esse
expediente foi usado para se conhecer a vontade de Deus. Se fosse uma norma
para a igreja teria sido utilizado novamente.
Em
adição, é preciso lembrar que Jesus só subiu aos céus “depois de ter dado
mandamentos, pelo Espírito Santo, aos apóstolos que escolhera” (At
1.1,2). Ora, não seria razoável concluir que a consagração de um décimo-segundo
apóstolo estava entre esses mandamentos? É bem verdade, no entanto, que nenhum
deles disse que foi Jesus quem ordenou tal procedimento.
Contudo,
em sua segunda carta, o mesmo Pedro que orientou o grupo a agir daquela maneira
(cf. At 1.15-22), asseverou que o mandamento do Senhor e Salvador veio por
intermédio dos seus apóstolos (2Pe 3.2). Isto é, eles eram porta-vozes de
Cristo; representantes autorizados do Filho de Deus. Por isso, a igreja servia
Jesus perseverando na doutrina apostólica (At 2.42).
Os
apóstolos, portanto, estavam investidos de autoridade. O discurso de Pedro
parece refletir isso. Ele fala com convicção, usando palavras que denotam imprescindibilidade,
a fim de indicar aquilo que Deus predissera que aconteceria. Ele emprega, por
exemplo, o grego deî (termo que aponta para algo que “é necessário”[3]), nos versículos 16 e 21,
dando a entender que a traição de Judas, bem como sua substituição tinham de acontecer.
É
digno de nota que esse termo grego, tanto na LXX (Septuaginta) quanto no N.T.
(Novo Testamento), sobretudo nos escritos de Lucas (o Evangelho de Lucas e o livro
de Atos), está relacionado com a vontade de Deus e não com algo como o destino[4]. A partir daí,
subentende-se que, pelo menos na concepção de Pedro, a consagração de um
décimo-segundo apóstolo estava alinhada com a vontade divina.
Mas
onde estava a base para essa conclusão? De acordo com a narrativa, a
fundamentação do discurso de Pedro estava nas Escrituras. Tanto, que ele se
remete a três salmos para embasar suas asserções. Em primeiro lugar,
referindo-se provavelmente ao salmo 41.9, ele diz: “convinha que se cumprisse a
Escritura que o Espírito Santo predisse pela boca de Davi, acerca
de Judas, que foi o guia daqueles que prenderam a Jesus” (At 1.16). Em
seguida, ele cita os Salmos 69.25 e 109.8: “porque no livro dos Salmos está
escrito: fique deserta a sua habitação, e não haja quem nela habite, tome
outro o seu bispado” (At 1.20).
Perceba
que cada passo em Atos 1.15-26 estava ancorado no Antigo Testamento. Mas de
onde veio a compreensão de que era possível aplicar esses textos àquela
situação, já que o Espírito Santo não havia sido derramado? Bem, de acordo com
Lucas, antes de ascender aos céus, Jesus ensinou aos apóstolos que tudo o que
convinha que se cumprisse acerca dele “estava escrito na lei de Moisés, e nos
profetas e nos Salmos” (Lc 24.44).
Curiosamente,
o evangelista utilizou o grego deî (traduzido na ACF como “convinha”) para
transmitir a ideia que Jesus quis comunicar em aramaico. Ou seja, conforme o
relato, tal como Pedro, Jesus cria que era “necessário” que algumas coisas
acontecessem justamente porque estavam registradas nas Escrituras. Isso indica
que a fala de Pedro, na realidade, era produto dos ensinamentos de Cristo.
O
evangelista ainda acrescenta que o Filho de Deus abriu o entendimento dos
apóstolos para que compreendessem o texto bíblico (Lc 24.45). Foi daí que veio
a conclusão de Pedro. Afinal, Jesus ficou com eles “por espaço de quarenta
dias, falando das coisas concernentes ao reino de Deus” (At 1.3). Logo,
certamente foi Ele quem lhes ensinou essas coisas.
Sinceramente,
se não fosse assim, seria no mínimo estranho que o mesmo Espírito Santo, que
matou um casal por mentir para Deus (At 5.1-11), tivesse permitido que um erro
desses persistisse na igreja sem que houvesse alguma palavra contrária. Por que
não inspirou Lucas para que fizesse uma observação, tal como o discípulo amado
fez a respeito de Judas em João 12.6[5]? Aliás, por que não há, em
nenhuma parte do N.T., um comentário sequer sobre a ilegitimidade do apostolado
de Matias? Esses questionamentos têm de ser levados em conta ao tratar desse
assunto.
Outro
ponto que causa estranheza é o fato de que os pais da igreja nunca viram Matias
como um apóstolo ilegítimo. Ao invés disso, vários deles reconheceram seu
apostolado. Irineu de Lyon (130-202 d.C.), por exemplo, menciona que Matias foi
consagrado para ocupar o lugar de Judas[6]. Semelhantemente, João
Crisóstomo (347-407 d.C), comentando 1 Timóteo 1.19, explica que os apóstolos,
conscientes de que o Espírito Santo ainda não fora dado, submeteram a escolha
de Matias a Deus por meio da oração[7].
Eusébio
de Cesareia (265-339 d.C.), o autor da História Eclesiástica, obra que relata a
história da igreja desde o livro de Atos dos Apóstolos, segue a mesma linha em
relação à consagração de Matias. Ele assevera, inclusive, que além de ter se
tornado apóstolo em substituição a Judas, Matias também fez parte dos setenta
discípulos que Jesus comissionou em Lucas 10[8].
Em
face do exposto, fica patente que a tese da consagração ilegítima se apoia em um
terreno arenoso. Suas premissas carecem de fundamentação bíblica e histórica.
Suas bases parecem mais pressuposições que fatos. Porém, antes de apontá-la
como uma interpretação inviável, há outro problema que tem de ser analisado.
2.
Como entender Atos 2.14; 6.2 e 1Coríntios 15.3-8?
Decerto, esse é o grande desafio dos
defensores da ilegitimidade do apostolado de Matias. Não há como advogar essa
ideia sem lidar com os textos supramencionados, uma vez que cada um deles faz
menção de doze apóstolos, sem contar com Paulo. Em Atos 2.14, por exemplo, num momento
em que o apóstolo dos gentios nem havia se convertido, Lucas relata que Pedro
pôs-se “em pé com os onze”. O mesmo ocorre no capítulo 6 de Atos. O versículo
2 diz que “os doze” convocaram a multidão dos discípulos. Ora, ao
atender essa convocação, “a multidão dos discípulos” demonstrou que reconhecia
Matias como um dos doze. Se não fosse isso, por que atenderiam sem questionar? Poderiam
indagar: - O que esse homem faz entre os apóstolos?
Além
disso, se a consagração de Matias não foi válida, quem seria então esse
décimo-segundo apóstolo mencionado por Lucas? Dizer que era Paulo seria um
claro anacronismo. A única resposta possível é: o décimo-segundo apóstolo era
Matias. Isso parece evidente, visto que o narrador não faz nenhuma observação
que indique o contrário.
Todavia,
essa evidência interna parece insuficiente para quem descredibiliza o
apostolado de Matias. Por isso, diante dela, eles replicam evocando a distinção
entre textos narrativos e normativos, a partir da qual argumentam que as
declarações de Lucas não podem ser levadas tão a sério, dado que o livro de
Atos é uma narrativa, e não um texto normativo.
A
bem da verdade, como destacam Stuart e Fee, “passagens narrativas geralmente
não ensinam nada diretamente; ao contrário, elas ilustram o que é ensinado
diretamente em outros lugares”[9]. No entanto, isso não
significa que a narrativa não possa ser usada para entender como Deus interveio
no decorrer da história e lançar luz sobre conteúdos doutrinários. Se assim
fosse, Atos 2 não poderia ser usado para esclarecer o ensino de 1Coríntios 12 e
14.
Outrossim,
desconsiderar afirmações de um texto bíblico simplesmente porque se trata de
uma narrativa é o mesmo que criar um cânon dentro do cânon. As narrativas são
fundamentais para o entendimento dos textos normativos. Afinal, elas “ilustram
o que é ensinado diretamente em outros lugares” [10]. “Porque tudo que dantes
foi escrito para nosso ensino foi escrito” (Rm 15.4a). Logo, as narrativas
precisam ser interpretadas, e não descartadas.
Além
disso, em 1Coríntios 15.3-8, Paulo corrobora a declaração de Lucas. Ele diz
que, após Sua ressurreição, Jesus foi visto por Cefas (Pedro), e depois pelos
doze. Depois foi visto, uma vez, por mais de quinhentos irmãos [...] depois foi
visto por Tiago, depois por todos os apóstolos. E por derradeiro de todos...”
apareceu a ele, “como a um abortivo” (1Co 15.5-8).
Observe
que o apóstolo Paulo se refere aos doze como se ele não pertencesse ao grupo.
Ele relata que viu Jesus somente depois de sua aparição aos “doze”. Ora, se
antes de se mostrar a Paulo o Cristo ressurreto apareceu aos doze, é patente
que Paulo não fazia parte dos doze. De acordo com Kistemaker, “a diferença
entre Paulo e os doze é óbvia: ele submete o seu trabalho à apreciação dos
apóstolos (veja Gl 1.18; 2.2,7-10)”[11].
Evidentemente,
isso não o torna inferior aos doze. Até porque, todos foram nomeados por Jesus.
Inclusive Matias. Ainda que no caso do décimo-segundo apóstolo essa nomeação
tenha ocorrido pela instrumentalidade dos onze, em última análise, foi Cristo
quem o nomeou. O Espírito Santo ratificou essa nomeação no dia de Pentecostes,
enchendo-os e capacitando-os para serem testemunhas (At 2.4,14), em vez de
repreendê-los por uma decisão equivocada. Por isso, ninguém questionou seu
apostolado nos primeiros séculos da igreja cristã[12].
Contudo,
como salienta Kistemaker, apesar de Paulo não preencher plenamente os
requisitos detalhados em Atos 1.21,22, ao lado de Pedro, ele “é o apóstolo mais
proeminente na igreja primitiva”[13]. Com isso, não queremos sugerir
que Paulo pertencia a uma segunda classe de apóstolos. Com efeito, cremos que o
apóstolo dos gentios estava no mesmo nível dos doze.
Como
sublinha Lopes[14],
a Bíblia apresenta algumas marcas do apostolado de Paulo. A primeira delas é o
fato de ele ter visto o Cristo ressurreto, o qual apareceu diante dele no
caminho de Damasco (cf. At 9.3-8). Essa aparição, conquanto difira da
experiência dos doze, dado que ele não chegou a ver o corpo de Jesus, foi uma
legítima manifestação do Filho de Deus em seu corpo glorioso, cheio de
resplendor (cf. At 26.13). Após isso, Paulo viu Jesus outras vezes (cf. At 18.9;
22.17,18).
Outra
marca do apostolado de Paulo é ter sido comissionado diretamente por Jesus (cf.
At 26.14-18). Vale ressaltar, entretanto, que o comissionamento de Paulo, tal
como o de Matias, foi mediato. Isto é, Jesus usou Ananias para escolhê-lo (cf.
At 22.14), assim como usou os apóstolos para eleger Matias. Em Atos 26.14-18, o
apóstolo condensa o ocorrido atribuindo tudo a Jesus, sem mencionar Ananias,
porque, mesmo usando um homem, quem o chamou foi o próprio Cristo.
A
terceira marca são os seus sofrimentos por causa daquele que o chamou. Pois,
conforme destaca Lopes, “associado ao chamado apostólico vinha o sofrimento”[15]. Isso foi dito a Ananias antes
de seu encontro com Paulo: “Eu lhe mostrarei quanto deve padecer pelo meu nome”
(At 9.16). Em 2 Coríntios 11.16-33, há um relato de algumas dessas dolorosas
experiências.
Por
conseguinte, acreditamos que Paulo e Matias eram apóstolos legitimamente
comissionados por Jesus. De modo que o antigo perseguidor dos cristãos estava
no mesmo nível dos doze. A diferença entre eles, no entanto, era o foco do seu
ministério. Enquanto os doze e os demais judeus cristãos continuavam a observar
certos preceitos do judaísmo, tais como orar no templo três vezes ao dia (cf. At
3.1), abster-se de alguns alimentos (cf. At 10.14-15; 11.3; Gl 2.11-14), Paulo
se dedicava a comunicar o evangelho aos gentios, sem lhes impor essas coisas.
A
manutenção dos costumes judaicos, segundo Lopes[16], fez com que, em geral, os
judeus fossem o foco da pregação dos doze. De sorte que, conquanto Pedro tenha
aberto a missão aos gentios (cf. At 10 e 11), ela não recebeu ênfase até que
Paulo iniciasse seu ministério. É claro que Deus poderia ter despertado os doze
para preencherem essa lacuna, mas “aprouve a ele, em vez disso, levantar mais
um apóstolo”[17].
Em
virtude disso, concluímos que os textos em que os doze são citados sem que
Paulo esteja incluído não contradizem o ensino neotestamentário acerca do
apostolado. Ao contrário, eles o corroboram. Porquanto quatorze indivíduos
foram chamados por Jesus para esse ofício: Pedro, André, Tiago (filho de
Zebedeu), João, Filipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus, Tiago (filho de Alfeu), Tadeu,
Simão (o Zelote), Judas Iscariotes, Matias e Paulo. Porém, apenas 13 serviram
fielmente.
Certamente,
uma declaração como essa gera outros questionamentos. Pensando nisso, nos
tópicos seguintes procuraremos oferecer respostas bíblicas às principais
indagações levantadas por aqueles que condenam o apostolado de Matias.
3.
Lucas estava usando a expressão “os doze” como uma referência simbólica ao colégio
apostólico?
Uma
das explicações aventadas pelos proponentes da tese da consagração inválida, sugere
que o propósito de Lucas ao utilizar a expressão “os doze” teria sido referir-se
ao colégio apostólico. Dessa forma, todas as vezes em que, após a morte de
Judas, ele escreveu “os doze” sua intenção era apontar para a liderança
apostólica.
Esse
argumento até faria sentido se no evangelho de Lucas e no livro de Atos o “médico
amado” (Cl 4.14) não tivesse usado a expressão “os onze” para aludir ao colégio
apostólico (cf. Lc 24.9, 33; Atos 1.26; 2.14). Até porque, se ele empregou “onze” para
se referir aos apóstolos, justamente no período entre a traição de Judas e a
eleição de Matias, parece óbvio que quando ele disse “onze” ele queria dizer
onze, e quando disse “doze” queria dizer doze. Senão, por qual razão ora usaria
“onze” e ora usaria “doze”?
4.
Por que não substituíram o apóstolo Tiago após seu martírio?
Em Atos 12.1-2, a Bíblia registra o
assassinato de Tiago irmão de João. Não obstante, de acordo com o texto,
ninguém foi eleito para ocupar o seu lugar. Diante disso, quem sustenta a
ilegitimidade do apostolado de Matias, pergunta: se a substituição de um
apóstolo morto era necessária para manter o número doze, por que não elegeram
alguém para ocupar o lugar de Tiago?
Esse é um questionamento muito
pertinente. Pois, se de fato ter doze apóstolos era tão importante, Tiago
deveria ter sido substituído. Entretanto, a questão não era manter o número
doze a qualquer custo. Na realidade, por entenderem que a igreja deveria ser
vista como a continuação direta do Israel veterotestamentário, os apóstolos
concluíram, com base nos salmos 41.9; 69.25 e 109.8, que o número de fundadores
do novo Israel deveria ser o mesmo do antigo, ou seja, doze[18]. Além disso, diferente de
Tiago, Judas era ladrão (cf. Jo 12.4-6) e traidor (cf. Lc 6.16).
Outro ponto interessante na
correlação entre o povo de Deus do Antigo Testamento e a igreja primitiva é o
fato de que, apesar de ter iniciado com doze patriarcas e mantido o número de
doze tribos como referência, Israel tinha treze tribos. Isso porque, embora
Jacó tivesse sido pai de doze filhos homens, José recebeu porção dobrada da
herança, a qual foi distribuída entre as tribos formadas por seus dois filhos,
Efraim e Manassés[19]. A tribo de Levi, por
outro lado, não recebeu território tribal. De maneira que, no total, se
mantiveram doze territórios, mas na prática existiam treze tribos[20]. Em Números 2 essas treze
tribos são relacionadas.
Com base nisso, parece razoável
concluir que o número doze era simbólico e aludia à liderança espiritual do
povo escolhido, estabelecida por Deus a partir dos filhos de Jacó. Contudo,
após percorrer Israel, ensinando nas sinagogas, Jesus constatou que o povo
estava sem líderes que os pastoreassem. Eram “como ovelhas que não têm pastor”
(Mt 9.36). Por isso, em seguida, Ele chamou os doze e os nomeou seus apóstolos
(Mt 10.1). E, como diz Lopes, “Ao nomear doze apóstolos e enviá-los em missão
aos judeus, Jesus estava instituindo uma nova liderança espiritual em Israel”[21].
Eis
a razão para serem doze: eles representavam o novo Israel[22], isto é, a igreja. Mas,
assim como ocorreu com o Israel veterotestamentário, o número doze não está
preso a uma literalidade engessada. Afinal de contas, ainda que o número
representativo fosse doze, a partir do chamado de Paulo, passaram a existir
treze apóstolos. Tal como ocorrera com as treze tribos no Antigo Testamento.
5.
Como entender Apocalipse 21.14?
Os
argumentos apresentados até aqui parecem suficientes para esclarecer um suposto
problema existente em Apocalipse 21.14, onde é dito que os fundamentos do muro
da Nova Jerusalém têm “os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro”. Os que esposam
a tese da ilegitimidade do apostolado de Matias, defendem que só podem existir
doze apóstolos, visto que só há doze fundamentos. No entanto, levando em conta
que o livro emprega uma linguagem altamente simbológica, e que no Antigo
Testamento o número doze era representativo, não podemos concluir que só existiram
doze apóstolos, mas sim que o número doze representa o novo Israel.
Essa ideia é ratificada por
Apocalipse 7, uma vez que o texto omite a tribo de Dã. Segundo Geisler[23], a omissão ocorre porque
os danitas abandonaram sua herança original, ao sul de Israel, e tomaram pela
força uma área ao norte de Aser. Ademais, Dã foi a primeira tribo a cair na
idolatria. Isso se parece com a situação de Judas: traiu o Senhor e foi
substituído. Como Tiago não traiu Jesus, sua morte não exigiu uma substituição.
Para Wiersbe, a retirada de Dã e
Efraim da relação de Apocalipse 7 constitui uma indicação de que a
interpretação a respeito das tribos e dos apóstolos não deve ser excessivamente
literal[24].
Mas, voltando aos fundamentos do
muro da Nova Jerusalém, Hernandes Dias Lopes ressalta que o sentido é simbólico,
assim como os demais números utilizados no livro. O intérprete, portanto, não
deve ficar preso ao número doze. Porquanto, o fundamento apostólico da cidade aponta
para a teologia da igreja, e não para o número exato de apóstolos. “A igreja do
céu, a noiva do Cordeiro, a Nova Jerusalém está edificada sobre o fundamento
dos apóstolos, sobre a verdade revelada, sobre as Escrituras”[25].
Conclusão
Paulo e Matias eram apóstolos. Diferente
do que alguns podem pensar, essa asserção não abre margem para a defesa da
atualidade do ministério apostólico. Até porque, como afirmamos repetidas
vezes, houve apenas treze apóstolos genuínos. O ministério deles foi
fundamental para a estruturação e desenvolvimento da igreja. Tanto que os
convertidos “perseveravam na doutrina” deles. Entre esses doutrinadores,
evidentemente, estava Matias. Porém, depois daqueles homens, ninguém mais
ocupou essa posição.
A interpretação de que a consagração de
Matias foi um erro apostólico, por outro lado, enfraquece o texto bíblico como
Palavra de Deus. Afinal, apesar de o texto fazer uma afirmação clara sobre
algo, esses intérpretes se levantam e dizem: - não foi bem assim.
Ademais, conforme foi demonstrado, as
bases para a ilegitimidade do apostolado de Matias vêm de pressupostos, e não
da Bíblia. Pois o livro de Atos não o desqualifica em momento algum. Aliás,
nenhum texto bíblico o faz. Por conseguinte, a conclusão inevitável é que essa
interpretação é o produto de uma ideia desenvolvida fora das Escrituras. Nem
mesmo a história eclesiástica testemunha a seu favor! Logo, não podemos
concordar com seus postulados.
Pr. Cremilson
Meirelles
[1] Um erro hermenêutico muito
utilizado para sustentar doutrinas sem amparo bíblico. Quem o utiliza, assume que
se algo não foi literalmente proibido nas Escrituras sua prática é permitida.
Por exemplo, a Bíblia não tem um versículo que diga: “não usarás drogas”; logo,
segundo essa visão, seu consumo seria permitido. Esse é um dos erros
relacionados por Stuart e Fee no Manual de Exegese Bíblica (cf. STUART, Douglas;
FEE, Gordon D. Manual de exegese bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2008, p.
199).
[2] LOPES, Augustus Nicodemus. Apóstolos.
São José dos Campos, SP: Fiel, 2014, p. 43.
[3] GINGRICH,
Felix Wilbur. Léxico do Novo Testamento. São Paulo: Vida nova.
2005, p. 50.
[4]
Cf. BROMILEY,
Geoffrey W. Theological Dictionary of the New Testament. Abridged in one
volume. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans Publishing Company, 1985, p. 126.
[5] “Ora, ele disse isto, não pelo cuidado que tivesse dos
pobres, mas porque era ladrão e tinha a bolsa, e tirava o que ali se lançava”
(João 12.6).
[6] Cf. LYON, Irineu de. Contra as
Heresias. Coleção Patrística, v. 4. São Paulo: Paulus, 1995.
[7] Cf. CRISÓSTOMO, João. Comentários às
cartas de São Paulo. Coleção Patrística, v. 27/1. São Paulo: Paulus, 2010.
[8] CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica.
São Paulo: Novo Século, 2002.
[9] STUART; FEE, 2008, p. 53.
[10]
STUART; FEE, 2008, p. 53.
[11]
KISTEMAKER, Simon. Comentário
do Novo Testamento
– Exposição de Atos dos Apóstolos. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 99.
[12] A didaskalia Apostolorum,
um documento cristão do século III, também relaciona Matias entre os doze (cf. The
Didaskalia Apostolorum in english. Translated
from the syriac by Margaret Dunlop Gibson. London: C. J. Clay and Sons, 1903, p.
12).
[13] KISTEMAKER, 2003, p. 99.
[14] Cf. LOPES, 2014, p. 62-72.
[15]
LOPES, 2014, p. 69.
[16] Cf. LOPES, 2014, p. 72-78.
[17] LOPES, 2014, p. 77.
[18] Cf. STOTT, John R. W. A
mensagem de Atos. São Paulo: ABU, 1994, p. 58.
[19] Cf. ARCHER, Gleason Leonard. Enciclopédia
de temas bíblicos: respostas às principais dúvidas, dificuldades e
"contradições" da Bíblia, 2 ed. São Paulo: Editora Vida, 2001.
[20] Cf. WIERSBE, Warren W. Comentário
Bíblico Expositivo: Novo Testamento, v. 2. Santo André, SP: Geográfica
editora, 2006, p. 793.
[21] LOPES, 2014, p. 40.
[22] LOPES, 2014, p. 42.
[23] GEISLER, Norman. Manual popular
de dúvidas, enigmas e contradições da Bíblia. São Paulo: Mundo Cristão, 2003.
[24] Cf. WIERSBE, 2006, p. 793.
[25] LOPES, Hernandes Dias. Estudos
no livro do Apocalipse. São Paulo: Hagnos, 2005, p. 156.
É um caminho extremamente perigoso fundamentar qualquer interpretação sem fundamentação nas Escrituras. Tal postura se torna uma porta escancarada para a entrada de heresias. A base sólida da fé cristã está na Bíblia. Excelente texto!
ResponderExcluirTexto simples, objetivo e conclusivo. Nos ajuda a formar uma opinião Bíblica cristã, sem julgamento e pautadas em fatos e acontecimentos registrados por quem esteve com Jesus e com os apóstolos. Obrigado, aprendi mais!!!
ResponderExcluirQue bom! Fico feliz em ajudar! Deus te abençoe!
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