A atual fase em que vivemos, caracterizada pela ampla
utilização das redes sociais para manutenção da fé cristã comunitária, tem
provocado várias reflexões acerca de questões de natureza eclesiológica, nunca
antes pensadas por evangélicos de linha histórica. Afinal de contas, nesse
contexto, a adoração coletiva sempre ocorreu de forma presencial. Mesmo aqueles
que tinham o hábito de navegar pela internet, jamais cogitaram a possibilidade
de substituir as reuniões da igreja pela transmissão de cultos online. A simples possibilidade de fazê-lo já causaria
estranheza. Por essa razão, é natural que os desdobramentos dessa prática sejam
encarados com resistência.
Contudo, o que deve ser considerado, em primeiro
lugar, é o caráter extraordinário da restrição relativa aos ajuntamentos. Isto
é, essa religiosidade online é
circunstancial, não permanente. Na verdade, é mais um paliativo. Pois, não pode
(e nem deve) substituir os encontros presenciais. Pois, se dissermos que a interação
cristã via internet contém os mesmos
elementos do culto público, sendo, portanto, seu equivalente eletrônico,
teremos de concordar que o comparecimento a eventos considerados importantes
para entes queridos pode também ser substituído, por exemplo, por uma
videoconferência. Sendo assim, ninguém poderia se entristecer se, ao invés de
estar presente no aniversário de um filho, no casamento de uma filha ou no
sepultamento de um parente, lançássemos mão desse expediente. O grande
problema, entretanto, é que não é isso que acontece. As pessoas não se
satisfazem com a “presença virtual”! Elas querem mais! E com razão, porque
“presença virtual” não é presença de fato.
Apesar disso, diante da situação ímpar que vivemos,
alguns, preocupados com a descontinuidade das atividades outrora realizadas no
templo, sem refletir sobre essas implicações, decidiram celebrar a Ceia do
Senhor por meio das redes sociais. O curioso, no entanto, é que aqueles que o
fizeram, em grande parte, são os mesmos que saíam às ruas oferecendo “abraço
grátis”, sob a justificativa de que, na maioria das vezes, o que o ser humano
mais precisa é de um abraço. Ora, se o abraço é necessário, mas não dá para
abraçar via internet, fica claro que há diferença entre o encontro presencial e
a interação virtual.
Outrossim, é digno de nota o fato de que, antes da
“quarentena”, muitos pregadores asseveravam que o uso intenso de smartphones seria danoso às relações
familiares, uma vez que dificultaria a comunhão presencial. Pois, conforme
afirmavam, há muitos lares em que, embora as pessoas partilhem o mesmo espaço
geográfico, a comunicação ocorre mais pelas redes sociais que presencialmente;
o que, segundo eles, promovia o afastamento. Contudo, com a chegada do COVID-19
e o consequente isolamento social, parece que essas ideias desapareceram, e a
comunicação via internet se tornou, aos olhos de muitos, equivalente ao
encontro presencial. Então, aqueles que antes alertavam quanto ao tempo
excessivo gasto com redes sociais, passaram a defender ferrenhamente a vida
cristã virtual. De maneira que até batismo online
foi realizado. E não parou por aí. Já se tem notícia de um casamento feito à
distância.
Dentre os argumentos favoráveis a esse upload espiritual, está o seguinte
sofisma: o dízimo tem de ser entregue presencialmente, mas aceitamos que os
membros transfiram o valor para conta da igreja, logo tudo o que se faz
presencialmente pode ser feito à distância. Evidentemente, essa argumentação
negligencia elementos fundamentais. Haja vista que o dízimo, conquanto seja
importante, não pode ser comparado, por exemplo, à Ceia do Senhor. Até porque,
enquanto esta é uma ordenança sem periodicidade definida, aquele é o meio
estabelecido por Deus para manutenção de Sua obra; e, tendo em vista que as
necessidades financeiras são mensais, sua prática deve também ser mensal. Por
conseguinte, interrompê-la, ainda que provisoriamente, traria prejuízo para a
igreja local. Dessa forma, sua periodicidade é patente. A Ceia do Senhor, por
outro lado, por não ser considerada um meio de graça (pelo menos por aqueles
que a veem como um memorial), se interrompida por um ou dois meses, não
prejudica espiritualmente os membros da igreja.
Além do
mais, vale ressaltar que, biblicamente, as contribuições não eram sempre
entregues no templo. Em
Gn 14.17-20, por exemplo, Abraão entregou o dízimo, no caminho, a Melquisedeque,
o qual o transportou até o seu destino. Praticamente o mesmo que se faz numa
transferência bancária: damos à instituição a responsabilidade de levar o
dinheiro ao local de destino (a conta da igreja). Em adição, vale ressaltar que,
em Dt 14.28,29, relata-se que, a cada três anos, o dízimo era levado
ao local onde os levitas moravam (e não ao templo) e doado aos pobres,
estrangeiros, órfãos e viúvas, com os quais o dizimista fazia uma refeição (Dt
14.28,29). Semelhantemente, no Novo Testamento, quando não havia templo
cristão, as
contribuições eram estregues diretamente aos apóstolos (At 2.44,45; 4.33-37).
Visto
isso, concluo que há algo errado na leitura que alguns têm feito dos limites
entre o virtual e o presencial. Parece que, como declarou Zygmunt Bauman[1],
“a proximidade virtual e a não virtual trocaram de lugar: agora a variedade
virtual é que se tornou a ‘realidade’”. Estão ressignificando o conceito de
ajuntamento e comunhão cristã. Mas, essa, definitivamente, não é a realidade
exposta pelas Escrituras. Trata-se de uma superadaptação
do evangelho à cultura. Um extremo desnecessário e divorciado da exegese
bíblica.
Afinal,
o próprio Jesus deixou suficientemente claro que o ajuntamento cristão humano é
caracterizado pela presença física. O único que não está nessa condição, por
ocasião das reuniões, é Deus; e, justamente por conta disso, o Mestre declarou
que não beberia do fruto da vide até que se reunisse com seus discípulos,
fisicamente, no Reino do Pai (Mt 26.29). Isto é, Ele disse que, embora
estivesse presente nas reuniões da igreja (Mt 28.20), através da pessoa do
Espírito Santo (Jo 14.16,17), só participaria da Ceia quando estivesse
fisicamente presente. Ora, o Cristo poderia ter validado naquele momento a
celebração da Ceia online, e, a
reboque, toda a vida cristã no ambiente virtual! Mas, por alguma razão,
considerou o encontro presencial importante e insubstituível. Portanto, se Ele
não validou, opto por fazer o mesmo. Pois, como diz a Bíblia, temos de ser “imitadores
de Deus, como filhos amados” (Ef 5.1).
Pr.
Cremilson Meirelles
[1] BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido:
sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
VIDA CRISTÃ ONLINE: CAMINHOS E DESCAMINHOS VIRTUAIS
Reviewed by Pr. Cremilson Meirelles
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09:40
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excelente texto pastor, muito edificante.
ResponderExcluirObrigado.
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