É comum ouvirmos e lermos críticas a
respeito de frases como “o melhor de Deus está por vir”, “o novo de Deus
chegou”, “eu profetizo sobre a sua vida”, etc. Contudo, há certos chavões que,
mesmo sendo igualmente problemáticos, passam despercebidos pelos “radares
teológicos”. Um exemplo disso é a expressão “dar brecha para o diabo”. Porque,
embora pareça inofensiva, e até seja considerada, por alguns, como verdadeira,
traz no seu bojo o veneno teológico que tem intoxicado o pensamento evangélico
contemporâneo, sendo, portanto, extremamente nociva.
A impropriedade dessa frase se torna
patente quando vasculhamos as Sagradas Escrituras, visto que ela não aparece em
nenhuma das versões existentes. Mesmo assim, há quem objete, dizendo que o
termo “trindade”, conquanto seja amplamente utilizado e aceito, também não é
mencionado na Bíblia. No entanto, a maioria esmagadora da cristandade reconhece
que a doutrina trinitária está presente em inúmeros textos bíblicos, o que não
acontece com a teologia da brecha.
Então, de onde veio essa expressão? Para
responder a essa pergunta, basta usar o mesmo veneno teológico que a gerou: ela
surgiu porque alguém “deu brecha” em sua mente para que o falso ensino, uma das
armas mais eficazes do inimigo, penetrasse no seio da Igreja. Até porque, quando
submetida à análise, a ideia por trás da frase revela sua natureza antibíblica.
Senão vejamos: a frase “dar brecha para o diabo”, sempre que proferida, dá a
entender que ao redor dos crentes há uma espécie de “campo de força
espiritual”, formado por anjos ou por alguma força etérea. Assim, quando as
pessoas pecam abre-se nesse “campo de força” uma brecha, através da qual o
diabo consegue penetrar e tocar a vida dos servos de Deus.
Partindo dessa premissa, os defensores
da “teologia da brecha”, tal como os amigos de Jó, atribuem toda sorte de males
(desemprego, divórcio, dívidas, doenças, acidentes, etc) à ação de Satanás por
meio das “brechas” dadas pelos cristãos. Ou seja, conforme advogam, todo o mal
que vem sobre nós é resultado de nossos pecados, pois quando os praticamos
abrimos portas para a entrada do diabo. Seja sincero, há alguma base bíblica
para isso? É claro que não!
Esse falso ensino leva os incautos a
concluírem que seus atos podem lhes conceder bênçãos ou maldições. Isto é, se
agirem corretamente, orando, lendo a Bíblia, dizimando, o diabo permanecerá
longe. Contudo, ao menor sinal de erro, ele se aproxima, pois o pecado lhe dá
“legalidade”. Assim, para manter o “corpo fechado” (ideia difundida pelo
espiritismo), é necessário evitar todo tipo de transgressão. Com isso, a pessoa
passa a obedecer a Deus por medo do que Satanás possa fazer, e não por amar o
Senhor. Tal pensamento contraria os ensinos de Jesus, os quais apontam apenas
uma razão para obedecer: o amor. “Se me amardes, guardareis os meus mandamentos”
(João 14.15).
Não podemos obedecer ao Senhor para
escapar do diabo ou de alguma maldição. É o novo nascimento que levará a essa
obediência, não a ameaça de alguém. Um milagre foi operado em nós! Somos novas
criaturas (2Co 5.17)! Fomos regenerados! Fazemos o que fazemos porque Cristo
nos transformou, não para obtermos bênçãos terrenas ou celestiais, nem mesmo
para sermos protegidos das investidas de Satanás. Tudo o que ocorre em nossas
vidas é resultado da graça divina. Nada que fizermos nos fará “merecer” ou
“desmerecer” algo. Somos destinados ao inferno não pelo que fazemos, mas por
quem somos: pecadores. Afinal de contas, é justamente por isso que pecamos. O
pecado é a doença, os pecados são os sintomas. Pecar é o que fazemos com
maestria. Logo, ninguém pode ir para o céu pelo que faz, mas pelo que Jesus
fez. De igual modo, jamais seremos atacados por Satanás pelo que fizermos, mas
por quem somos, a saber: filhos de Deus. Por conta disso, as Escrituras nos
concitam a resistirmos ao diabo.
A propósito, é importante ressaltar que
a ação de Satanás está debaixo da soberania de Deus. Ele nada faz sem a ordem
divina. Até mesmo quando tentou Jesus (Mt 4.1-11), o diabo foi apenas um
instrumento nas mãos do todo-poderoso. Por isso, a Bíblia diz que Cristo foi
levado “pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo”. Isto é, a
tentação fazia parte do propósito divino.
À luz dessas asserções, a pseudoteologia
da brecha se mostra ainda mais contraditória. Pois, se são os nossos pecados
que produzem as tais “brechas”, e todo ser humano é pecador (Rm 3.23; Ec 7.20),
em tese, as portas estariam escancaradas para o maligno. Ninguém poderia
escapar! Afinal, a Bíblia afirma categoricamente que “não há homem que não
peque” (1Rs 8.46). Logo, não haveria as chamadas “brechas para o diabo”, uma
vez que todos já estariam nas mãos dele. Que contradição!
O absurdo fica maior ainda quando lemos
a história de Jó. Porquanto, o que motivou a ação satânica sobre a sua vida foi
justamente sua retidão, e não algum pecado obscuro, como pensaram seus amigos.
De igual modo, no livro do Apocalipse 11.3-7, as duas testemunhas, após
cumprirem sua missão de proclamação, são assassinadas pela besta que sobe do
abismo (o anticristo). Que pecado terrível cometeram as testemunhas para que um
agente do diabo as matasse? Nenhum em especial. Na verdade, foram mortas por
proclamarem o Evangelho. Igualmente, em Ap 13.1-7, a besta que sobe do mar
(perseguição orquestrada por satanás) recebe permissão para fazer guerra aos
santos e vencê-los. Qual a razão para isso? Pecados ocultos cometidos pela
noiva de Cristo? É claro que não! A igreja é perseguida desde a sua fundação.
Isto não é resultado do pecado, mas da fidelidade a Deus. O pertencimento ao
Corpo de Cristo torna-nos alvo da perseguição de Satanás e seus agentes. Por
conseguinte, o sofrimento, como diz o apóstolo Pedro, não deve ser considerado
estranho à vida cristã (1Pe 4.12). O próprio Jesus nos ensinou que o simples
fato de estarmos no mundo já nos traz aflições (Jo 16.33).
É bem verdade, entretanto, que, por
sermos seus filhos, o Senhor nos guarda da ação satânica. Tanto, que as
Escrituras afirmam: “Sabemos que todo aquele que é nascido de Deus não vive em
pecado; antes, Aquele que nasceu de Deus o guarda, e o Maligno não lhe toca”
(1Jo 5.18). Porém, isso não está condicionado àquilo que fazemos, mas ao fato
de sermos filhos (nascidos de Deus). Não
importa o que façamos, o que nos livra do diabo é novo nascimento. Se sou nova
criatura não preciso ter medo desse Ser caído. Na verdade, a postura que a
Escritura nos manda assumir em relação a ele é a de resistência (Tg 4.7) e
firmeza (Ef 6.11), jamais de medo. Porque a Bíblia nos garante que “maior é o
que está em nós do que o que está no mundo” (1Jo 4.4).
A despeito dessas asserções, há quem
argumente em favor da “teologia da brecha” citando Isaías 59.2: “Mas as vossas
iniquidades fazem divisão entre vós e o vosso Deus, e os vossos pecados
encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça”. Não obstante, o texto em
pauta nada tem a ver com essa doutrina. Porque, embora se refira a uma situação
específica vivenciada pelo povo de Israel, encerra um princípio universal, a
saber: o pecado mantém o homem afastado de Deus. Só a graça pode mudar essa
situação. Não há nada no texto que indique que o diabo age quando pecamos.
Todavia, os defensores da “teologia da
brecha” não desistem facilmente. Quando acuados, utilizam a arma que consideram
mais poderosa: Efésios 4.27; texto no qual Paulo adverte: “não deis lugar ao
diabo”. Usando essa frase, eles pensam ter toda fundamentação bíblica de que
necessitam. Será que estão certos? Seria essa a base bíblica para essa doutrina?
Só se extraíssemos o texto de seu contexto. Do contrário, a resposta é não.
No texto em questão, o apóstolo estava
orientando a igreja de Éfeso acerca da ética social cristã, a fim de manutenir
a comunhão dos crentes. Esse objetivo fica patente nos versículos anteriores.
Em Efésios 4.25, por exemplo, vemos que Paulo salienta a necessidade da unidade
do Corpo, asseverando: “somos membros uns dos outros”. Ao comentar esse texto, Ralph
Martin (1988, p. 198) destaca: “[...] o fato de a pessoa não honrar a sua
própria palavra leva a um rompimento da comunhão cristã, porque essa prática
leva a desconfiança e suspeita, e, por esse motivo, destrói a vida em comum no
corpo de Cristo”.
Nos versículos seguintes (26 e 27),
Paulo aconselha seus leitores a não permitirem que a ira se transforme em
mágoa, ódio ou amargura. Porque isso, além de comprometer a harmonia da igreja,
poderia servir de oportunidade para o diabo fomentar o furor e a resistência ao
perdão, visto que esta é consequência inevitável da ira continuada. Para
enfatizar esse ensino, o apóstolo emprega o termo grego diabolos (difamador, maldizente, caluniador), em lugar de satanás
(adversário), título mais comumente associado ao inimigo.
Ademais, nada no contexto dá a entender
que se pecarmos o diabo entra em nossas vidas e “faz arruaça”. Até porque,
Satanás não pode nos controlar. Ele nos tenta (1Ts 3.5) e procura nos enganar
com o falso ensino (Jo 8.44), mas não pode nos dominar. Agora somos dominados
pelo Espírito Santo (Gl 5.18). O todo-poderoso está conosco todos os dias (Mt
28.20).
Vale salientar também que Deus não está
em guerra com o diabo. Seria uma luta extremamente desigual. Satanás já tem seu
fim decretado: “o lago de fogo e enxofre” (Ap 20.10). O Senhor não está
disputando as almas dos homens com o diabo. Ele já elegeu os salvos desde a
eternidade (Ef 1.4). A história não está desgovernada; ela está nas mãos daquele
que está assentado sobre o trono (Ap 5.1). O diabo não faz o que quer.
Alfim, se, mesmo depois de toda essa
argumentação, você ainda continua pensando que não há problema algum no uso
dessa expressão, pois entende que se trata de um modismo inofensivo, convido-o
a refletir mais um pouco comigo. Pense: a teologia neopentecostal tem sido
amplamente propagada por meio de canções, jargões e chavões. Frases como “eu
profetizo sobre a sua vida” e “tá amarrado” estão eivadas de ideias extra
bíblicas. Da mesma forma, é impossível dissociar as implicações da nefasta “teologia
da brecha” do famoso jargão “dar brecha para o diabo”. Logo, a frase não tem
nada de inofensiva. Por isso, recomendo: abandone-a e fique somente com as Escrituras. Deus o abençoe!
Pr.
Cremilson Meirelles
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAMPLIM,
Russel Norman, 1933- O Novo Testamento
Interpretado: versículo por versículo. São Paulo: Hagnos, 2002. 4 v.
FOULKES,
Francis. Efésios: introdução e
comentário. Série cultura bíblica. São Paulo: Vida Nova. 2011.
HENDRICKSEN,
William. Comentário do Novo Testamento.
Exposição de Efésios e Exposição de Filipenses. São Paulo: Editora Cultura
Cristã. 2 ed. 2004.
MARTIN,
Ralph P. Efésios. In:
Comentário Bíblico Broadman. Tradução de Arthur Anthony Boorne. 2 ed. Rio de
Janeiro: JUERP, 1998. 11 v. p. 157 – 217.
A TEOLOGIA DA BRECHA
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