Sempre que o fim do ano se aproxima, começam os discursos contrários às
celebrações que têm lugar nessa época. Uns criticam apenas o excessivo apelo
comercial que envolve esses eventos, enquanto outros condenam tudo e todos que
fazem parte deles. Estes últimos justificam sua postura asseverando que todas
essas festas, bem como os elementos que as constituem, são de origem pagã. De
acordo com essa visão, quem participa delas está adorando os demônios que
outrora eram cultuados nessa data, atraindo, assim, maldições sobre sua vida.
Além disso, os adeptos desse pensamento entendem que a simples utilização de
objetos e símbolos de origem pagã pode trazer uma série de malefícios
espirituais e físicos sobre o indivíduo.
Todavia, por mais que procure fundamentação bíblica para essas crenças, não
consigo encontrar. Talvez seja porque essa doutrina não está lá, visto que
nunca foi um pensamento cristão. Provavelmente, esse é o motivo pelo qual só
encontro essas ideias em filmes de terror, em histórias de duendes e fadas, no
filme do Shrek, do Harry Potter, Senhor dos Anéis, etc. Até porque, elas só
fazem sentido nesse contexto. Do contrário, estaríamos atribuindo ao paganismo
um poder que ele não tem. Não podemos fazer mais nada, pois tudo é pagão, em
todo lugar tem um demônio escondido, tem um símbolo do Diabo. Cruzes!!! Não há
lugar seguro! Parece que Satanás domina tudo! Não sobra nada para Deus! Somos
levados a viver com medo, porque o demônio pode estar escondido em objetos, em
palavras, em atitudes. Podemos estar adorando o inimigo sem sabermos! Por mais
que eu nunca tenha ouvido falar em Mitra, Janus, Semíramis ou qualquer outra
divindade pagã, posso estar adorando a elas agora, sem saber! Ai meu Deus! Será
que o computador também é de origem pagã? Bem, a escrita alfabética é. Então,
devo estar adorando mesmo. E a roupa que estou vestindo? Será que quem a fez
era cristão? E se não era?!? Estou numa enrascada!
Você percebe o absurdo dessa crença? Não faz sentido algum! Se crermos assim,
ficaremos loucos. Pois, cedo ou tarde, descobriremos que tudo o que existe, um
dia, foi empregado para fins religiosos. Conforme explica Mircea Eliade (2008,
p. 18),
tudo
quanto o homem manejou, sentiu, encontrou ou amou pode tornar-se uma hierofania[1]. Sabemos, por exemplo, que no seu conjunto os gestos,
as danças, as brincadeiras das crianças, os brinquedos têm origem religiosa:
foram, no tempo, gestos ou objetos cultuais. Sabemos, do mesmo modo, que os
instrumentos de música, a arquitetura e os meios de transporte (animais,
carros, barcos, etc) começaram por ser objetos ou atividades sagradas. Podemos
pensar que não existe nenhum animal ou planta importante que tenha participado
da sacralidade no decurso da história.
Se formos eliminar de nossas vidas tudo o que já
foi usado no paganismo, tudo o que é de origem pagã, é melhor deixar de viver.
Veja bem, até os nomes dados aos dias da semana, assim como os nomes dados aos
meses do ano são de origem pagã. O que fazer? Dar novos nomes para “quebrar a
maldição”? De acordo com Viola (2005, p. 30),
Janeiro
refere-se ao deus romano Janus; Março ao deus romano Marte; Abril vem de Aprilis,
o mês sagrado de Vênus; Maio à deusa Maia; e junho à deusa Juno; Domingo (Sunday)
celebra o deus sol; Segunda-feira (Monday) é o dia da deusa lua; Terça-feira
(Tuesday) refere-se ao deus guerreiro Tiw; Quarta-feira (Wednesday) ao deus
teutônico Wotan; Quinta-feira (Thursday) ao deus escandinavo Thor; Sexta-feira
(Friday) à deusa escandinava Frigg; e sábado (Saturday) refere-se a Saturno, o
deus romano de agricultura.
O próprio corpo humano já foi usado em cultos pagãos; o sexo também foi
largamente empregado para esse fim. O que vamos fazer, abraçarmos o celibato?
Nada escapa ao paganismo! Até a calça que você usa originou-se em um contexto
pagão. Sabia disso? Ela surgiu entre os antigos persas, por volta do século VI
a.C. Os persas eram pagãos. Como a calça era o traje típico deles,
naturalmente, usavam-na em seus cultos. E aí, vai continuar usando? O códice,
precursor dos modernos livros, surgiu no século I da era cristã, entre os
gregos, que eram pagãos. Vamos parar de ler livros por causa disso?
Muita gente abraça essas baboseiras, mas nem sabe o que significa ser pagão.
Este termo vem do latim pagani, que se referia aos camponeses, à gente
do campo, do interior. Estes eram assim chamados por habitarem o pagus,
ou seja, o país (MABIRE, 1995). Como os interioranos foram os últimos a
abandonarem a antiga religião greco-romana, o nome paganismo tornou-se a
designação dada pela igreja a toda e qualquer religião nacional. Porquanto,
como o Cristianismo tinha aspirações universais, contrastava com as religiões
da época, que, em sua maioria, eram limitadas geográfica e culturalmente. Por
isso, passaram a ser chamadas de pagãs. Contudo, mesmo que o Cristianismo tenha
prevalecido, seu surgimento se deu em mundo dominado pelas crenças pagãs. Muito
do que já existia naquela época havia sido produzido por pagãos (os judeus não
inventaram tudo). Logo, é natural que alguns elementos culturais tenham sido
assimilados. Isso ocorre até hoje. Basta ver os ritmos e instrumentos
utilizados pelos músicos em nossas igrejas. Já existe pagode gospel, pop
gospel, rock gospel, forró gospel, hip hop gospel, etc. As guitarras, os
baixos, as baterias, os teclados... você acha que isso tudo surgiu em um
contexto cristão? Você consegue imaginar Jesus cantando com as três Marias
fazendo backing vocal, Pedro tocando guitarra, João na bateria e Tiago nos
teclados? É claro que não! Essa prática é produto da cultura na qual estamos
inseridos.
Só porque os romanos dedicavam o dia 1º de janeiro a Janus, deus dos portões,
eu não posso mais celebrar o ano novo? Que absurdo! O fato de reunirmos nossas
famílias e agradecermos a Deus pelo alvorecer de um novo ano, não significa que
estamos adorando um deus pagão. A maioria das pessoas nunca ouviu falar nesse
tal de Janus, como podem, pois, estar adorando-o? O mesmo se aplica a Mitra.
Fala sério! Quem pensa assim, está limitando Deus. Nosso Deus é o
Todo-poderoso, ninguém é maior que Ele! Tudo pertence a Ele: dias, lugares,
objetos, animais, plantas; são as pessoas que atribuem significados a essas
coisas, mas, no fim, são apenas coisas, inanimadas, não há deuses nem demônios
nelas. O uso que fazemos das coisas é que determina seu significado para nós.
Essa crença de que objetos utilizados em qualquer forma de magia, ocultismo ou
religião idólatra ficam impregnados de emanações malignas, como se demônios de
fato residissem nos mesmos, assim como a ideia de que há dias fastos e
nefastos, é a maior expressão do antigo paganismo. Esse conceito de espíritos
malignos habitando em árvores, casas e objetos, nada tem a ver com as Escrituras.
Estas mostram demônios atuando exclusivamente em seres vivos, humanos ou
animais.
Por causa do pavor das maldições, um monte de
crentes se priva das celebrações de fim de ano, quando, na verdade, deveriam
aproveitar o ensejo para proclamar o evangelho. Não é errado comemorar. Errado
é esquecer o real significado do que fazemos. Mais errado ainda é não comemorar
com base nessa besteirada. Ninguém vai ser “amaldiçoado” por objetos, palavras,
ou festas. A Bíblia diz que “aquele que é nascido de Deus o maligno não toca”
(1João 5.18). É hora de parar de bobeira e adorar ao Senhor todos os dias,
inclusive, no natal e no ano novo!
Pr. Cremilson Meirelles
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ELIADE,
Mircea. Tratado de História das Religiões. Tradução de Fernando
Tomaz e Natália Nunes. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
MABIRE,
Jean; VIAL, Pierre. Os Solstícios: história e actualidade. Tradução de
Nuno de Ataíde. Lisboa: Hugin, 1995.
VIOLA,
Frank A. Cristianismo Pagão: analisando as
origens das práticas e tradições da igreja. São Paulo: Abba Press,
2005.
[1] Uma
manifestação do sagrado. Ao referir-se a esse “sagrado”, Eliade não tem em
mente o Deus cristão, mas toda e qualquer forma de sobrenatural, pessoal ou
impessoal. Ele quer dizer, portanto, que o homem utilizou tudo o que existe
para adorar deuses.
O PODER DO PAGANISMO
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