Texto Base: 1Co
12.12-31
INTRODUÇÃO
Infelizmente, vivemos em um tempo no
qual aquilo que dantes era padronizado, estruturado, sólido, foi dissolvido.
Como afirma Zygmunt Bauman, a realidade contemporânea é essencialmente líquida.
A relativização de tudo desnorteou não só pessoas como também instituições. As
denominações que outrora eram firmes em seus preceitos e convicções fraquejaram
diante da líquida era moderna, sendo quase que engolidas pelo
neopentecostalismo. Os crentes tradicionais perderam algo que lhes era tão
precioso, a saber, sua identidade. Por conta disso, hoje é possível ver, por
exemplo, nas igrejas batistas, membros que defendem as mesmas doutrinas
sustentadas por pentecostais e neopentecostais. Muitas vezes, o pastor, como
guardião da ortodoxia, desiste de ensinar suas convicções doutrinárias por
causa do gigante neopentecostal que arromba as portas do templo. Assim, as ovelhas
acabam sendo pastoreadas pelos tele pastores ou por programas de rádio.
O texto em questão, na sua literalidade,
não trata desse assunto. Até porque, a
Bíblia não fala sobre denominações. Mesmo assim, muitos usam o texto de 1Pe 4.10, afirmando
que a infinidade de denominações se deve à “multiforme graça de Deus”, ou seja,
as muitas divisões seriam, na verdade, uma maneira de Deus oferecer um cardápio
variado de opções aos não crentes. Assim, os mais calmos poderiam procurar uma
igreja mais calma, enquanto os mais agitados se encaixariam perfeitamente em um
ambiente mais movimentado. Apesar de esta interpretação ser bonita e
“politicamente correta”, sinto dizer que ela não expressa o real significado do
texto, uma vez que o mesmo trata da diversidade de dons espirituais, não de
denominações. 1Co
12, definitivamente, não fala sobre isso.
Na verdade, esse texto vem sendo
largamente empregado para transmitir mensagens que versam sobre a comunhão, com
temas do tipo “unidade na diversidade”. Porém, tomando por base o princípio
identitário presente nele, pretendo utilizá-lo para abordar a questão da
identidade denominacional, um aspecto da vida cristã que tem sido bastante
desprezado. Para tanto, proponho o seguinte título: “Identidade na Diversidade”.
A primeira coisa que desejo destacar a esse respeito é que:
A
UNIVERSALIDADE NÃO ANULA A IDENTIDADE.
Como falamos, em 1Co 12, Paulo não tem a
intenção de falar sobre denominações. Sua intenção prioritária é corrigir os
desvios da igreja de Corinto, que lhe foram relatados pela família de Cloé (1Co
1.11), e através de Estéfanas, Fortunato e Acaico (1Co 16.17,18). Isto é, ele
focava a solução de um problema local: a supervalorização da fala extática em
detrimento dos outros dons e pessoas. Naquele contexto, os faladores de línguas
eram considerados super espirituais, enquanto os demais eram desprezados.
A fim de resolver a questão, Paulo
relembra seus ouvintes de que todos fazemos parte do mesmo corpo (1Co
12.12,13), e que esse corpo é constituído de pessoas com características
distintas (gregos, judeus, servos, livres). Isto é, conquanto trate de
problemas da igreja local, agora ele se remete ao caráter universal da igreja
de Cristo. Tanto, que até ele mesmo se inclui (“todos nós”). Tal visão pode
também ser aplicada a nós para lembrar-nos que o Reino de Deus não se limita à
nossa confissão doutrinária. “Todos nós” fazemos parte de um mesmo corpo,
assembleianos, congregacionais, presbiterianos, batistas, metodistas, etc.
Todavia, o que me chama mais atenção é
que, ao apontar esse aspecto universal, o apóstolo mostra que a
universalidade não anula a identidade. No corpo há diversidade, mas também há
identidade. Há olhos, narizes, bocas. Um é um e o outro é outro. Ninguém é
igual, mas todos são um. Paulo destaca a importância da orelha ser orelha e do
olho ser olho. Um não tem que ser igual ao outro para ser do corpo (v. 16). Não
precisamos pensar igual para fazermos parte do corpo de Cristo. Até porque, em
função de nosso distanciamento histórico, existem inúmeras interpretações a
respeito dos mesmos textos. Daí surgem pentecostais, neopentecostais e tradicionais,
mas é importante que um seja um e o outro seja outro. Precisamos como Paulo fez,
valorizarmos a identidade, pois fazê-lo é valorizar a diversidade.
Pensar diferente não é errado, mas a
forma como encaramos esse pensamento, a maneira como reagimos diante dele, é que pode erguer-se como barreira e dificultar as relações. Por isso, afirmo
categoricamente: não precisamos brigar com outros, mas temos de saber quem
somos. Orelha ou olho? Não é pecado discordar dos outros, não é errado ser um
crente tradicional. Errado é acharmos que todas as denominações devem pensar da
mesma forma. Sempre
haverá pontos conflitantes entre os diversos segmentos evangélicos. Isso não é
um fenômeno recente, a discordância esteve presente na igreja desde o
princípio. Paulo, por exemplo, discordava da visão de Pedro e dos outros
cristãos de Jerusalém. Estes criam que os gentios convertidos deviam observar
os ritos e preceitos do judaísmo, enquanto aquele entendia que bastava que eles
recebessem a Cristo como Salvador. Foi essa controvérsia que os levou à
realização do primeiro concílio, em 51 d.C (At 15).
Embora Paulo não tratasse, como
sublinhamos, da identidade denominacional, os princípios apresentados pelo
apóstolo podem muito bem nos levar a essa reflexão. Até porque, a identidade é de suma
importância, pois ela reflete o posicionamento interpretativo frente às
verdades secundárias da nossa fé. Quem não tem uma posição definida fica a
mercê das heresias que tão de perto nos rodeiam. “É
preciso manter-se firme às crenças que temos, sem fingir que todas as religiões
são a mesma coisa, pois claramente não o são” (TUTU, 2012, p. 26).
Contudo, com o
passar do tempo a identidade denominacional foi esfacelada. Muitas igrejas batistas,
por exemplo, encontram-se bem distantes da homogeneidade de outrora. Vemos
pastores, ditos “batistas”, abençoando pessoas, dizendo: eu te abençoo! Muitos “profetizam”
sobre a vida dos outros, desconsiderando a declaração de 2Pe 1.21, “Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os
homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo”; decretam bênçãos,
creem em maldições, demonizam tudo, defendem a teologia da prosperidade,
apresentam Deus como um “agiota”, de modo que se a pessoa não der o dízimo Ele
trará enfermidades e toda sorte de males. Que absurdo!
Com isso, vemos que o pensamento
neopentecostal invadiu nossa denominação. Ninguém liga mais para aquelas questões
de antigamente (línguas, profecia), a moda agora são os objetos
ungidos/amaldiçoados, o ungido do Senhor, as maldições, os rituais, etc. Em
suma, elegeram o neopentecostalismo como uma nova ortodoxia e consideraram a teologia das igrejas
históricas como ultrapassada. Acredito que isso é resultado dessas ideias
contemporâneas que tanto nos angustiam, visto que propagam o pensamento de que
a responsabilidade pelo crescimento da igreja que pastoreio é minha. Por
conseguinte, se ela não cresce, a culpa é minha. Por isso, muitos não querem
ensinar a verdade, enquanto outros preferem abraçar a mentira.
Ora, como podemos fazer tal coisa, visto
que somos filiados a denominação batista, tendo abraçado não só seus princípios
como também sua declaração doutrinária? Não podemos negar isso e professar uma
nova fé, levando nossas ovelhas ao desvio doutrinário, negando nossa história. Se
não soubermos quem realmente somos, como executaremos nossas funções com
eficácia. Se a orelha pensa que tem que ser olho, como executará a função de
orelha? Os pentecostais compartilham sua fé em todo o tempo. E nós, o que
fazemos? Nos calamos. Precisamos resgatar nossa identidade. Nossas ovelhas
precisam ouvir de nós a resposta para a pergunta: quem somos nós?
A segunda coisa que quero salientar é
que:
IDENTIDADE NÃO SIGNIFICA SECTARISMO
Ter identidade denominacional não
significa intolerância ou intransigência. Pelo contrário, como Paulo mesmo
afirma não podemos dizer que não temos necessidade de “A” ou “B” porque não
pensam como nós (1Co 12.21). Afinal, todos fazemos parte de um mesmo corpo!
Paulo mostra que é possível amar mesmo em meio à diversidade de pensamentos.
Todos são importantes. Cada um atua em uma área. Isto não nos torna inimigos.
Apenas evidencia nossa identidade.
Quando Paulo diz que não devem existir
divisões (1Co 12.25), ele não está dizendo que não devem haver denominações,
nem está sendo contra a identidade denominacional. O termo grego traduzido como
“divisões”, é o grego schisma que dá
a ideia de rasgo, cisão, dissensão, divisão. O apóstolo o usa para referir-se
às facções que caracterizavam a igreja coríntia (um era de Paulo, outro de
Cefas, outro de Apolo, etc), não às denominações. Ele estava falando de
divisões que geram conflitos, violência, animosidade.
Acredito que é
possível nos relacionarmos como irmãos, filhos do mesmo Pai, sem abrirmos mão
de nossas convicções. Afinal de contas, não é isso que acontece em nossas
famílias? Quantos irmãos consanguíneos, embora se amem e convivam bem,
discordam acerca de um ou outro ponto? Com certeza, muitos. Alguns, inclusive,
possuem ideias diametralmente opostas. Mesmo assim, conseguem viver em
comunhão.
Discordar não é
brigar, é ser humano. Desmond Tutu, um bispo anglicano da África do Sul,
utiliza em suas relações um lema que descreve muito bem aquilo que estamos
falando. “Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de
dizê-lo” (TUTU, 2012, p. 186). Pensar diferente não é o mesmo que não amar. Ao
contrário, é entender que existe essa possibilidade, e que o outro, tanto
quanto eu, tem esse direito.
Isso não significa, todavia, que tenhamos por obrigação,
sob a ameaça da falta de amor, que convidar ou receber, em nossas igrejas, pregadores
e cantores oriundos de outras denominações. Porquanto, o amor fraternal do qual
a Bíblia fala é muito maior do que estar junto em uma programação ou poder
pregar na igreja do outro. O amor deve ser manifestado no trato diário, fora
dos limites físicos do templo. Até porque, normalmente, quando alguém prega,
canta ou ministra, é inevitável a manifestação de sua identidade, seja
“tradicional”, pentecostal ou neopentecostal. Somos filhos do mesmo Pai. Mas,
pense comigo: se você tivesse um irmão que pensasse totalmente diferente em
relação a educação dos filhos, o deixaria ensinar seu filho? Certamente, vocês
iriam conviver, se amar, se ajudar, mas na sua casa o ensino continuaria sendo
sua responsabilidade. Não querer que seu irmão dirija seu carro, porque você o
considera mau motorista, não significa que não o ame. O amor cristão deve ser
mostrado no dia-a-dia. Programações não mostram amor, só demonstram uma postura
politicamente correta.
CONCLUSÃO
Acredito ser possível convivermos com nossos
irmãos pentecostais e neopentecostais, desde que sejam respeitados os limites
de cada identidade denominacional, sem que um se imponha ao outro. Afinal de
contas, isso é amar: compreender, tolerar, andar mais uma milha. É possível sim
haver identidade na diversidade. Basta apenas entendermos que a universalidade
não anula a identidade e que identidade não significa sectarismo.
Pr.
Cremilson Meirelles
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN,
Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
TUTU,
Desmond M. Deus não é Cristão.
Tradução: Lilian Jenkino. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2012.
IDENTIDADE NA DIVERSIDADE (Mensagem pregada na Reunião da Subseção Litorânea da OPBB-FL)
Reviewed by Pr. Cremilson Meirelles
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19:43
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