A realidade da igreja evangélica contemporânea,
conquanto alegre muitos por causa das multidões que dominicalmente lotam os
templos, dá sinais explícitos de sua enfermidade. Isto porque, as Escrituras
foram gradativamente sendo deixadas de lado. De modo que as pregações são
norteadas pelo desejo do público, e não pela verdade bíblica. O que o povo
precisa ouvir, dificilmente, é falado.
Quem se dispõe a confrontar o sistema e lutar
contra o engano tem que estar pronto também para contemplar o esvaziamento do
templo, pois é isso que realmente acontece. As multidões só se ajuntam ao redor
daqueles que fazem promessas antibíblicas e pregam mensagens antropocêntricas.
Em meio a esse pandemônio, a mídia gospel aproveita e lucra com os shows e o misticismo
que caracteriza os cultos pós-modernos, sobretudo os neopentecostais. Por conta
disso, até mesmo igrejas históricas, que outrora eram fiéis proclamadoras da
mensagem do Evangelho, têm cedido ante a tentação do crescimento fácil,
alavancado pelo falso ensino. Por conseguinte, flexibilizam a doutrina,
aceitando conceitos e práticas que noutro tempo eram vistos como heresia.
Nesse ínterim, uns poucos corajosos ainda insistem
em contrariar tudo isso, tecendo críticas em suas comunidades de fé, blogs e redes
sociais, agindo como os profetas do passado, batendo de frente com as heresias
deste tempo, e se tornando, em virtude disso, os mais impopulares dos homens,
sendo alvo do apedrejamento da massa, que perece desprovida de opiniões
próprias, manipulada pelos falsos mestres.
Contudo, isso não é novidade. O próprio Cristo
padeceu por causa da mensagem que anunciava. Diversos homens de Deus, desde o
Antigo Testamento, tiveram suas vidas ceifadas por apregoarem a verdade. As
adversidades não foram capazes de dissuadi-los. Porquanto, entendiam que o mais
importante não era suas próprias vidas, mas a salvação daqueles que, sem Deus,
faziam a vontade do mundo, da carne e do diabo.
O profeta Amós foi um desses sofredores.
Encarregado de transmitir uma dura sentença deparou-se com um auditório assaz
resistente. Isto porque, sua incumbência era anunciar o juízo divino sobre uma
nação que acreditava estar sendo alvo do favor de Deus. Ou seja, o que o
profeta falava era totalmente diferente do que a maioria pensava. Praticamente,
ele estava sozinho. Algo bem semelhante ao que ocorre neste tempo, onde
charlatões induzem o povo a crer que estão no centro da vontade do Senhor,
ainda que tenham abandonado as Escrituras. Em oposição aos desvios propagados
por esses movimentos Deus tem levantado homens que, tal como Amós, proferem
discursos duros, mas bíblicos, apesar da reprovação dos ouvintes. Assim, em
virtude das similaridades entre as desventuras do profeta e as dificuldades
enfrentadas pelos atalaias contemporâneos, usarei seu exemplo, a fim de elencar
questões de grande importância para a reflexão dos cristãos da atualidade.
Inicialmente, para compreendermos a natureza dos
embaraços enfrentados por Amós, é necessário conhecer o ambiente histórico que
os provocou. O primeiro aspecto a ser destacado, por conseguinte, é a data.
Acerca desta, salientamos que o profeta em questão exerceu seu ministério em
Israel no século VIII a.C., e foi contemporâneo de Jonas e Oséias. Naquele
tempo, o Reino do Norte achava-se em seu apogeu no que tange à expansão
territorial, à paz política e à prosperidade nacional, pois o rei Assírio Adad
Nirari III (811-784), em uma série de campanhas contra as
cidades-estados arameias (805-802), destruíra o poder de Damasco e removera por
um tempo a ameaça Síria sobre Israel. Em razão disso, Uzias de Judá e Jeroboão
II de Israel puderam estender seus limites quase chegando aos da época de Davi
e Salomão. Tais sucessos inspiraram o orgulho nacional e a crença no favor
incondicional de Yahweh para com Israel.
Não obstante, a riqueza de Israel deu ocasião à
injustiça social e a avareza. Os pobres passaram a ser negligenciados e depois
ativamente perseguidos. A religião tornou-se uma rotina, quase mecânica,
alienada da real presença de Deus. Por isso, com uma intrepidez alavancada pelo
próprio Senhor, Amós proclamou corajosamente uma mensagem centrada na justiça,
retidão e retribuição divina, salientando que a prosperidade da nação servia
apenas para aprofundar sua corrupção. Isto fica evidente no versículo 14 do
capítulo 5, onde o profeta concita o povo a abandonar suas más obras: “buscai o
bem e não o mal, para que vivais; e assim o SENHOR, o Deus dos Exércitos,
estará convosco, como dizeis”. Ao fazer esta asserção, o profeta estava se
referindo ao comportamento impiedoso do povo, concitando-os a buscar aquilo que
é agradável a Deus e não o que O desagrada (as más obras). Esta verdade
torna-se patente ao analisarmos o texto hebraico, pois a palavra traduzida como
“bem” é tôḇ, a qual, literalmente, significa ser bom, alegre, agradável.
Isto é, não se trata de um substantivo, mas sim um adjetivo. Da mesma forma, a
palavra traduzida como “mal’ é rā’, que também é um adjetivo e significa
ruim, de má qualidade, mau, malvado, etc. Na verdade, Amós estava se referindo
às práticas dos israelitas, as quais desagradavam o Senhor. Os versículos
anteriores corroboram essa assertiva, visto que, nestes, ele menciona o
comportamento impiedoso do povo, condenando-o.
No v.15, Amós reforça seu apelo, utilizando o hebraico
sane’, que traz em si a ideia de odiar o que é mau. Ele ordena ao povo
(pois utiliza o imperativo) um posicionamento radical: desprezar totalmente o
pecado e amar a Deus. Isto é, uma reforma de todo o sistema legal e social. De
igual modo, os apologistas contemporâneos orientam os servos de Jesus Cristo a
assumirem uma postura igualmente radical, rejeitando tudo o que contraria o
ideal divino expresso através das Escrituras. Porque, tal como ocorria no tempo
do profeta em questão, hoje em dia, a vida cristã se tornou muito mais
ritualística que prática. As pessoas vão aos cultos no domingo, mas passam a
semana toda praticando tudo aquilo que a Bíblia diz para não fazer. Isto é,
cumprem os rituais, mas não vivem a fé que professam. Mesmo assim, creem firmemente
que Deus está com eles, guardando-os, suprindo suas necessidades,
sustentando-os.
Todavia, assim como ocorre atualmente, Amós era
discriminado e desprezado por muitos. Isto porque, como vemos nas primeiras
palavras do livro que leva o nome do profeta, ele era pastor de ovelhas.
Porquanto, conforme explica Bailey (1995), o pastor de ovelhas, apesar de ser
usado simbolicamente para representar reis, era desprezado socialmente.
Ademais, para piorar a situação, embora fosse natural de Judá, fora comissionado
por Deus para promulgar o juízo sobre as tribos do norte. Ora, desde a época de
Jeroboão I, havia rivalidade entre o reino do sul e do norte. Acrescenta-se
ainda o fato de que Amós era leigo, isto é, não era um profeta oficial. Pelo
menos é isso que se depreende de sua assertiva em Amós 7.14: “Eu não era
profeta, nem filho de profeta, mas boieiro e cultivador de sicômoros.” Ou seja,
ao invés de chamar um profeta oficial, Deus chama um pastor de ovelhas para
exercer o ministério profético, proclamando o juízo sobre Israel. Em suma, Amós
era um “zé ninguém”, membro de uma classe discriminada, se dirigindo a um
público que certamente o rejeitaria, por conta de sua naturalidade, e trazia
uma mensagem profética sem ser profeta oficial. Realmente seria uma tarefa
difícil (Talvez seja essa a razão de seu nome, o qual significa “carregado” ou
“carregador de fardos”).
À semelhança de Amós, as vozes que clamam neste
tempo, vêm de indivíduos rejeitados por não ostentarem títulos de destaque na
cultura gospel, não possuírem livros escritos, programas de TV, e por causa de
seu posicionamento diante da secularização e da relativização de tudo. Esses
homens, ainda que num contexto desfavorável, onde o que predomina é o ensino
dos reis desta geração, autodenominados “ungidos do Senhor”, lutam diariamente
para que seus rebanhos não sejam levados pelos ventos de doutrina que sopram
neste tempo. Por conta disso, sem medo, denunciam o pecado e desmascaram os
falsos mestres, ainda que isso culmine na diminuição de seu rebanho e na
discriminação dos outros.
Voltando ao livro de Amós, vemos que, ao anunciar
destemidamente o juízo que sobreviria às nações circunvizinhas, o profeta
atraiu a atenção dos israelitas, que sem dúvida se regozijaram por saber que o
juízo divino fora determinado sobre seus pecaminosos vizinhos (Damasco,
Filístia, Fenícia, Edom, Amon e Moabe), pois achavam que mereciam o castigo. O
mais interessante, entretanto, é que o sétimo lugar na lista de julgamento é
ocupado por Judá. Isto é, Amós prega até mesmo contra seus compatriotas! O
motivo? Rejeitaram a Lei e desobedeceram seus estatutos (Am 2.4,5). Com toda a
probabilidade isso foi extremamente agradável para os israelitas nacionalistas,
que se ressentiam do orgulho religioso de Judá. Tivesse Amós terminado sua
mensagem nesse ponto, ele poderia ter gozado de grande popularidade; mas não
foi isso o que aconteceu. Em seguida, na lista das sentenças encontravam-se os
israelitas, a quem ele dirigia a palavra.
Diante do desagradável discurso de Amós, o sacerdote
Amazias voltou-se contra o profeta e o confrontou com um ultimato: “vai-te, ó
vidente, foge para a terra de Judá, e ali come o pão, e ali profetiza.”
Trocando em miúdos, o sacerdote quis dizer o seguinte: “vai anunciar esse tipo
de mensagem lá na tua terra!” Mesmo assim, Amós não desistiu e seguiu,
cumprindo a missão que Deus lhe confiara, anunciando corajosamente o triste fim
de Amazias e Israel. É interessante como isso é atual! Afinal, os “sacerdotes”
deste tempo tentam constantemente calar os indivíduos que, mesmo sem a
aprovação da mídia, contrariam o senso comum, apregoando a verdade ainda que
ela desagrade os ouvintes.
Outro ponto que chama atenção é a postura do povo.
Porque, como mencionamos, o profeta se dirigia a um auditório que se considerava
especial por estar vivendo um momento próspero. No entanto, espiritualmente, a
nação ia de mal a pior. Por isso, Amós os concita a retroceder de seus maus
caminhos. Porquanto, só desse jeito, o ҆elōhê tsᵉḇāôth (Deus dos
exércitos) estaria com eles (Am 5.14). Assaz relevante neste trecho, é o final
da frase: “... e assim o Senhor, Deus dos exércitos, estará convosco, como
dizeis”. As duas últimas palavras, com certeza, foram confrontadoras. Amós usa ăsher,
que é uma partícula de comparação, podendo significar “como, segundo,
conforme”; e emprega o hebraico ҆amar na 2ª pessoa do plural masculino,
o qual significa “dizer, exprimir através da fala.” Com essa declaração o
pastor de ovelhas de Tecoa, praticamente, estava dizendo o seguinte: Vocês vivem
de forma irregular e falam constantemente que Deus os defenderá, não permitindo
que o inimigo prevaleça sobre Israel, porém isso só acontecerá se houver
mudança de conduta.
Sem dúvida, se Israel quisesse eliminar o sistema
corrupto de falsas acusações, suborno e corrupção, e insistisse que somente
decisões justas seriam tomadas, demonstraria uma mudança de coração. Amós
declara que se uma reforma como essa ocorresse, talvez o Senhor pouparia o
resto de José (Am 5.15). Quando ele diz “resto”, a palavra empregada é shᵉ ҆ērith,
cujo significado é remanescente, sobrevivente. A partir dessa assertiva do
profeta, é possível depreender que o juízo de Deus era inevitável, visto que só
existia a possibilidade de poupar os sobreviventes. O Senhor já havia deliberado
que iria castigar o povo por conta de seus pecados. Tanto, que nos versículos
seguintes (Am 5.16-20), Deus promulga o julgamento iminente sobre Israel e
mostra sua indignação com o comportamento israelita (Am 5.21-23).
Inobstante, no versículo 24, o Senhor manifesta seu
desejo, mostrando o procedimento que espera de Israel: “corra, porém, o juízo
como as águas, e a justiça, como ribeiro perene.” Isto é, Deus queria que,
assim como fluem as águas, o sistema legal israelita fluísse, sem opressão, sem
corrupção, e que, da mesma forma, houvesse justiça, honestidade, inocência,
verdade, ou seja, o povo deveria mudar o aspecto moral e social de sua vida. E
essa mudança tinha de ser permanente. Porquanto, conforme o texto em tela, a
justiça deveria fluir como um ribeiro perene. Ora, a palavra traduzida como
“perene” é o hebraico }êthān, que significa firme, constante,
permanente, perene.
Seguindo essa linha, os homens de Deus deste tempo
conclamam a igreja visível a uma mudança genuína e permanente. Afinal, o juízo
está por vir, e ninguém poderá escapar (Ap 20.11-15). Contudo, assim como os
ouvintes do profeta Amós, muitos evangélicos contemporâneos, embora procedam
como o mundo do qual dizem não fazer parte, estão convictos de que gozam do
favor do Senhor. Por conta disso, contraditoriamente, rogam ao Todo-poderoso
“pese a mão” sobre seus opositores, tal como os israelitas, que vibravam com o
juízo declarado sobre as nações vizinhas. Ademais, enquanto alguns líderes
incentivam a busca pela prosperidade, a responsabilidade social da igreja é
negligenciada.
Destarte, em face das semelhanças alistadas acima,
é imprescindível que os defensores da sã doutrina sigam em frente, proclamando
a verdade, ainda que os ouvintes sejam de semblante duro e obstinados de
coração. Afinal, temos vivido no tempo em que muitos não suportam a sã
doutrina, e amontam para si doutores conforme as suas próprias concupiscências,
se recusando a dar ouvidos à verdade (2Tm 4.3). Visto isso, cabe aos fiéis
combater o erro e apregoar o evangelho.
Pr. Cremilson Meirelles
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAILEY,
Kenneth E. As parábolas de Lucas: a poesia e o camponês: uma análise
literário-cultural. Tradução de Adiel Almeida de Oliveira. 3ª ed. São
Paulo: Vida Nova, 1995.
BÍBLIA.
Hebraico. Hebrew Old Testament and Hebrew New Testament. Londres:
Trinitarian Bible Society, 1998.
KIRST,
Nelson, et al. Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português. 18
ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004. 305 p.
SCHULTZ,
Samuel J. A história de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 1995.
AMÓS: NOSSO CONTEMPORÂNEO
Reviewed by Pr. Cremilson Meirelles
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