Há
muitos personagens bíblicos que, ao longo do tempo, vêm sendo relegados à
marginalidade. Os pregadores os acusam de falhas e os apontam como maus
exemplos, ressaltando apenas seus erros, esquecendo que muitos deles agiram de
acordo com sua cultura. Um exemplo claro disso é Marta. Pois, enquanto Maria,
sua irmã, em muitos discursos, é exaltada como padrão a ser seguido, dela só se
destaca o lado negativo. Parece que em Marta não existem virtudes. Pelo menos é
isso que alguns sermões indicam.
Sinceramente,
não consigo concordar com esse pensamento. Por que Marta é crucificada enquanto
Maria é exaltada? Será que a Bíblia dá respaldo para isso? Isso é justo com a
personagem? Acredito que não. Por isso, com o fito de restaurar a imagem
deteriorada de Marta e fazer justiça a essa serva do Senhor, pretendo, a partir
da análise de alguns textos, mostrar o outro lado da história. Porquanto,
embora muita gente veja as irmãs em questão como figuras antagônicas, a
narrativa bíblica revela algo diferente.
A
tradição tem defendido que Marta e Maria representam aspectos complementares da
vida religiosa: a atividade e a contemplação. Essa concepção é resultado da
interpretação de Lucas 10.38-42, onde se encontra o famoso episódio em que
Marta se preocupa com os afazeres domésticos e Maria, assentada aos pés de
Jesus, apenas ouve o Mestre. Por outro lado, usando o mesmo texto, tem-se
difundido uma ideia que considero equivocada a respeito das irmãs. De acordo
com essa linha, Marta seria o exemplo mais claro de alguém que se preocupa
exclusivamente com as coisas materiais, enquanto Maria representa aqueles que
optam pelo exercício mais intenso da espiritualidade. Assim, muitos pregadores
transformam Marta em um símbolo da mentalidade materialista e Maria no modelo
para o cristão genuíno.
Todavia,
no texto mencionado não vejo indício algum de que Marta, com sua atitude, não
estivesse priorizando Jesus. Ao contrário, a narrativa revela que foi ela quem
o recebeu em sua casa (Lc 10.38). Ora, se Maria pode ouvir o Mestre foi porque
Marta o hospedou. Como anfitriã, era natural que ela se preocupasse com o
bem-estar de seu convidado. Até porque, como assevera Bailey (1995, p.105), “a
responsabilidade oriental pelo hóspede é legendária”. Era uma questão de honra
para o hospedeiro receber bem seus convivas. Por conta disso, ao contrário do
que se apregoa comumente, Jesus, em momento algum, criticou a atividade de
Marta ou a apontou como um erro. Ele somente ressaltou que, por ter se
entregado tanto aos afazeres, ela estava perdendo a melhor parte daquele
encontro.
Marta
queria oferecer o melhor para Jesus, pois desejava agradá-lo. Afinal, era o
mais ilustre dos convidados: o Cristo, o Messias prometido. Era nisso que ela
cria! Por isso, em João 11.27 declara: “... Sim, Senhor, creio que tu és o
Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo”. Que mal pode haver em
buscar fazer o melhor para o Salvador? Quem nunca fez o mesmo para agradar
amigos e familiares? Como podemos criminalizar a atitude de Marta? Nem Jesus o
fez! Aquela mulher deu um grande exemplo para nós. Ela mostrou que para agradar
Jesus não se deve medir esforços. Ele tem de ser o centro. Tudo o que fazemos
deve ser por Ele e para Ele.
Acredito
que Marta estava convicta de que aquela era a hora da diaconia. Haja
vista que Jesus, certamente, estava acompanhado de seus discípulos. Pelo menos
é o que dá a entender Lucas 10.38, onde o evangelista assevera que “eles”
estavam indo pelo caminho. Por conseguinte, “o senso de responsabilidade de
Marta, como hospedeira, não permitiu que ela seguisse o exemplo de Maria”
(ALLEN, 1983, p. 119). Isto não significa que ela considerava menos importante
estar com Jesus. Tanto era importante para ela que o recebeu em sua casa.
Na
verdade, quem foge à regra no episódio é Jesus. Marta fez o que era certo na
sua época. O Mestre, porém, contrariando a mentalidade judaica, recebe uma
mulher entre seus ouvintes. Ora, esse não era um costume dos mestres judeus.
Até porque, de acordo com o pensamento rabínico, as mulheres eram incapazes de
dedicar-se a temas tidos como sérios ou importantes. Sua função era procriar e
cuidar do lar. O estudo da Torá era prerrogativa exclusivamente masculina.
Nenhum rabi da época faria o que Jesus fez, pois só os discípulos, ou seja, só
os homens, poderiam estar aos pés de seus mestres. Mesmo assim, Jesus vai de
encontro ao seu contexto cultural e recebe Maria como aprendiz. Esta, sem
dúvida alguma, era “uma inovação revolucionária, pois os rabis não ensinavam
mulheres” (ALLEN, 1983, p. 119).
À
luz desse contexto, a indignação de Marta é bastante compreensível. Penso,
inclusive, que qualquer um de nós agiria da mesma forma naquela situação.
Porque, enquanto ela se empenhava para dar o melhor para Jesus, sua irmã, ao
invés de ajudá-la, preferia permanecer assentada, ouvindo-o. Marta estava
sobrecarregada e indignada com a atitude de Maria. As bases para o conflito
estavam lançadas. Os desejos de Marta estavam em rota de colisão com os de
Maria. Ah, como é atual esse texto! Quantas vezes, as mesmas circunstâncias são
reproduzidas no seio da igreja: uns exercem intensa atividade enquanto outros
permanecem na contemplação. Diante disso, os conflitos são praticamente
inevitáveis.
Cabe
ressaltar ainda que, conquanto o conflito não seja necessariamente uma consequência
do pecado, certamente costuma ser uma ocasião para que o pecado aconteça
(POIRIER, 2011). Mesmo assim, Marta ao invés de dar ocasião à carne e arrumar
um problema com sua irmã, leva o caso ao Mestre. O único que pode solucionar
nossos conflitos. Quem dera que em nossas igrejas houvesse atitudes como a de
Marta! Muitos problemas poderiam ser evitados. Já imaginou? Se todos os
crentes, em vez de ofender uns aos outros, levassem suas aflições a Jesus?
Certamente, seria muito mais fácil pastorear. Não obstante, a maioria prefere
acusar, ofender, maldizer ou desprezar o outro. Muitos nem pensam antes de
agir, que dirá apresentar a questão a Jesus. Agem assim por se sentirem
justificados pelo erro do outro.
No
apelo de Marta também percebo algo que tem sido deixado de lado: ela reconhecia
Maria como discípula. Veja bem: Marta apela para Jesus porque sabe que um
discípulo reconheceria a palavra do Mestre como ordem. Sua ação é bem diferente
da maioria de nós, visto que tendemos diminuir o status daqueles com quem
estamos em conflito. Deixamos de referir-nos a eles com seus nomes pessoais e
utilizamos uma linguagem reducionista, empregando termos como: ele, ela, eles,
aquelazinha, dito cujo; isso quando não lançamos mão de palavras torpes. Ah...
como precisamos aprender com Marta. Porquanto, além de identificar Maria como
discípula e reconhecer que precisava dela, jamais deixa de reconhecê-la como
irmã (v. 40).
Por
mais que enfrentemos conflitos, nenhuma situação deve enfraquecer o vínculo
fraternal. Isso vale para irmãos consanguíneos e irmãos na fé. Acima de tudo,
somos irmãos. O próprio Jesus enfatizou isso em diversas ocasiões. Ao proferir
o sermão do monte, por exemplo, momento no qual se dirigia a seus discípulos,
por várias vezes Ele destaca que a outra parte do conflito é, na verdade, um
irmão. Isso fica evidente em Mateus 5.22-24:
Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se
encolerizar contra seu irmão será réu de juízo, e qualquer que chamar a
seu irmão de insensato será réu do Sinédrio; e qualquer que lhe chamar
de tolo será réu do fogo do inferno. Portanto, se trouxeres a tua oferta ao
altar e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti,
deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu
irmão, e depois vem, e apresenta a tua oferta.
Essa
é a visão de Marta: ela entende que por mais que a situação seja desagradável e
que sua indignação seja razoável, em momento algum Maria deixa de ser sua irmã.
Isto é, mesmo estressada, Marta ressalta três aspectos positivos de Maria: era
sua irmã, aluna de Jesus e necessária para execução das tarefas. Como posso
condenar essa mulher, que serve de exemplo para mim?
Na
resposta de Jesus, inclusive, percebemos muito mais compreensão que nas
homilias contemporâneas, uma vez que, além de falar com toda suavidade, o
mestre deixa claro que sabe muito bem como Marta se sente em relação à atitude
de sua irmã. De acordo com o relato de Lucas, no versículo 41, a ideia que
Jesus queria transmitir era a mesma dos termos gregos merimnas e thorybazō;
os quais significam, respectivamente, estar ansioso ou preocupado e estar
angustiado. Isto é, Ele sabia exatamente qual era a condição emocional de
Marta, pois conhecia profundamente seu coração. Jesus entendia perfeitamente
sua preocupação com a excelência da recepção. Tanto, que Ele reconhece que ela
estava cuidando de muitas coisas.
Todavia,
Marta precisava entender algo que muitos dos seguidores de Jesus não
compreendiam. O Rei dos reis não estava preocupado com a manutenção da tradição
ou da etiqueta judaica. Ao contrário, em diversas ocasiões Ele confrontou a
cultura da qual suas hospedeiras faziam parte. Porquanto, na verdade, Sua
intenção era ensinar o evangelho, na teoria e na prática.
Por
conseguinte, com todo amor, o Mestre esclarece que toda aquela preocupação e
angústia eram desnecessárias. Até porque, Sua visita não era um evento
meramente social, mas, acima de tudo, uma oportunidade para crescimento
espiritual. Destarte, Ele salienta que Maria escolheu a melhor (agathé)
parte. Sua frase não significa, necessariamente, que a escolha de Marta havia
sido errada, mas que a de Maria fora melhor. Jesus não a condena, só diz que
tudo aquilo não era preciso. Isto quer dizer que, embora houvesse outras coisas
que podiam ser realizadas em favor dEle, apenas a parte espiritual era
realmente essencial. Estar com Ele e ouvi-lo, sem dúvida, era mais importante
do que preparar-lhe um banquete.
Não
obstante, o episódio em tela deixa transparecer os traços mais marcantes da
personalidade das irmãs de Lázaro: Marta queria dar, enquanto Maria desejava
receber. Ao contemplar essas características, vejo como faz sentido a ideia
tradicional de que a atitude delas representa aspectos complementares da vida
cristã. Ademais, creio que há uma profunda lição a respeito do convívio
cristão: a despeito das diferenças, o vínculo que nos une é muito mais forte do
que aquilo que nos separa. Somos irmãos. Precisamos ter em mente que em tudo,
seja na alegria ou na tristeza, Jesus está conosco. Quando o enxergamos onde
Ele sempre está, no centro, fica muito mais fácil obliterar os conflitos.
Marta
e Maria são exemplos disso. Apesar das diferenças, estão sempre juntas. Não há
um texto sequer onde Marta apareça sem Maria e vice versa. De igual modo, ao
analisarmos outra ocasião na qual o Mestre visita a família (João 12.1-3),
percebemos que o serviço da primeira e a adoração da última são, de fato,
marcas de suas personalidades. Porquanto, novamente Marta serve e Maria adora.
Mesmo assim, o texto bíblico revela que Jesus as amava igualmente independente
de suas vocações (João 11.5), pois reconhecia que tudo o que faziam era para
agradá-lo. Destarte, Sua leve repreensão não interfere em Sua amizade com
Marta. Tanto que retorna à sua casa (João 12.1-3).
Entretanto,
ainda que Marta seja apresentada por alguns como materialista, em João 11, a
Bíblia mostra que, mesmo abalada pelo falecimento do irmão, sua fé permanece
inabalável. Isto fica patente em sua comovente confissão de fé: “Sim, Senhor,
creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo” (João
11.27). É ela, inclusive, que primeiro corre ao encontro de Jesus, enquanto
Maria permanece em casa. Mesmo assim, há quem afirme que Marta critica a Jesus
assim que Ele chega, visto que declara: “Senhor, se tu estivesses aqui, meu
irmão não teria morrido” (João 11.21). No entanto, Maria diz o mesmo em João
11.32; o que era natural diante das circunstâncias. Ora, elas haviam perdido o
irmão! Momentos como esse, inevitavelmente, nos levam a conflitos pessoais.
Portanto, antes de julgá-las, precisamos tentar nos colocarmos no lugar delas.
O
mais interessante é que, para Jesus, o suposto lado negativo de Marta, que
tanto incomoda alguns, é completamente irrelevante. A despeito de seus erros, o
Mestre continua a amá-la; o que, na verdade, é análogo ao Seu relacionamento
conosco. Porquanto, apesar de nossas falhas, o Senhor dos senhores permanece
nos amando incondicionalmente. Somos seus amigos, tal como Marta e Maria; e é
no convívio com Ele que crescemos espiritualmente, porque, com amor e
compreensão, Jesus nos ensina.
Assim,
em meio aos conflitos inerentes à condição humana, seja como parte do Corpo de
Cristo ou da sociedade secularizada na qual vivemos, assim como Marta, devemos
dar ouvidos à voz do Mestre. Haja vista que, segundo Lucas 10.38-42, após
escutar a orientação de Jesus, Marta não retrucou, nem se justificou. Acredito
que ela procurou por em prática aquelas palavras. Pelo menos, o texto não diz o
contrário. Logo, ao invés de criticá-la, devemos, na verdade, seguir seu
exemplo. Até porque, podemos estar sendo réus das acusações feitas a Marta sem,
nem mesmo, nos darmos conta disso.
Pr. Cremilson Meirelles
BIBLIOGRAFIA
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POIRIER, Alfred.
O pastor pacificador: um guia bíblico para a solução de conflitos na Igreja.
Tradução Marisa K. A. de Siqueira Lopes. São Paulo: Vida Nova, 2011.
FAZENDO JUSTIÇA À MARTA
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