Uma análise de João 2.1-11
Quem nunca ouviu falar do episódio no
qual Jesus transformou água em vinho? Mesmo aqueles que não professam a fé
cristã conhecem essa história. Até porque, ela já foi retratada no cinema,
livros a mencionaram, além de ser largamente empregada nas cerimônias de
casamento. Aliás, existe uma conhecida expressão popular referente às mudanças
radicais que se baseia no primeiro milagre de Jesus. É o famoso dito: “fulano
mudou da água para o vinho”!
Contudo, embora o uso frequente do texto
revele o apreço que a cristandade tem por essa narrativa, penso que grande
parte dos sermões fundamentados nela não reflete a realidade expressa nas
páginas do evangelho de João. Basta atentar para o protagonista de muitas
dessas homilias: o vinho. Este elemento vem roubando a cena já há muito tempo.
Porquanto, usando e abusando das alegorias, vários pregadores o transformaram
na alegria da vida conjugal, no Espírito Santo, entre outras coisas.
Dificilmente, o vinho é tratado como apenas vinho. Além disso, a bebida
produzida por Jesus também tem sido alvo de debates a respeito da abstinência
do álcool. Uns dizem que ela não era fermentada, enquanto outros argumentam o
contrário. Enfim, o Messias, o Salvador da humanidade, o Deus Todo-poderoso, é
deixado de lado e o vinho assume o papel principal.
Pensando assim, alguns chegam a sugerir
que o Cristo teria ido àquela festa somente para transformar a água em vinho,
devolvendo assim a alegria furtada pela ausência da bebida. Não obstante, ao
analisarmos honestamente o texto, a conclusão lógica e inevitável é que tal
assertiva não faz sentido algum. Sem dúvida, Jesus foi até Caná por outro
motivo. O problema é que sua motivação era tão óbvia e simples que muitos a desprezaram.
Ora, o Mestre dirigiu-se até àquela pequena aldeia apenas para participar da
festa e se alegrar com os nubentes. Afinal, foi para isso que o convidaram, não
é? Era uma festa de casamento, oras. Por que temos que “enfeitar o pavão” e
metamorfosear um relato tão bonito?
Penso que isto ocorre porque, para
alguns, parece algo estranho imaginar que o messias prometido, o próprio Deus
encarnado, teria tempo para se socializar com as pessoas, tal como nós fazemos.
Contudo, é exatamente isso que narra o evangelista João. Ele diz que Jesus e
seus discípulos foram convidados para as bodas em Caná da Galileia (Jo 2.2). Só isso.
Não diz que o vinho representava a alegria, e, muito menos, o Espírito Santo.
Na verdade, nenhum trecho da Bíblia diz isso! Na verdade, a beleza do texto não
está nessas aplicações alegóricas, mas sim no exemplo que Jesus nos dá. Pois, o
mestre mostra que devemos enxergar o ser humano não só como uma alma que
precisa de salvação, mas como um ser completo, com necessidades físicas,
sociais, psicológicas e espirituais. Precisamos valorizar todos os aspectos da
vida humana. A salvação é a maior das necessidades, mas não exclui as outras.
Jesus veio para nos salvar, mas considerou importante se alegrar conosco; e nem
por isso suas atividades deixaram de ser espirituais.
Todavia, é muito comum, no contexto
evangélico, supervalorizar aquilo que se faz no templo e atribuir menos valor
ao que se faz fora dele. Para que uma atividade seja considerada espiritual
deve ter alguma relação com o templo ou com o que se faz lá. Talvez, por conta
disso, alguns decidiram alegorizar esse episódio. Até porque, embora Jesus
tenha realizado um milagre, o contexto do evento nada tinha a ver com a
espiritualidade templária do Cristianismo posterior. A narrativa mostra, ao
contrário, o Mestre se divertindo com seus discípulos e amigos. Que magnífico
exercício da comunhão, tão exaltada nas Escrituras (Sl 133.1)! Não dá para
dizer que isso não é espiritual!
É necessário compreender que ser igreja
é muito mais do que frequentar templos. É estar junto, ter tudo em comum (At
2.44). Nas bodas de Caná, os discípulos estavam reunidos, literalmente, em nome e ao redor de Jesus. Eles estavam em comunhão com o Mestre e uns com os outros,
mas não estavam no templo. Creio que esse é o ponto principal, essa é a base
para o milagre: Jesus como centro e cada crente como parte de um organismo
vivo, dinâmico, que ultrapassa os limites geográficos e temporais. Assim,
anunciamos as boas novas e mostramos como é bom servir a Cristo.
Não estou afirmando, entretanto, que
devemos abandonar as reuniões no templo e os compromissos relacionados à
comunidade de fé da qual fazemos parte; ao contrário, quero te convidar a
enxergar a espiritualidade como algo maior do que os momentos que vivemos no
interior do templo, a entender que nosso relacionamento com Deus tem de
ultrapassar esses limites. Não podemos encenar, temos de viver isso o tempo
todo. Nas festas, no trabalho, em casa, no colégio, etc.
Dando sequência à análise do texto, algo
curioso salta aos olhos quando atentamos para a declaração de João acerca de
Maria. O evangelista não diz se ela foi convidada ou não, só afirma que ela já
estava lá (Jo 2.1). Penso que isto ocorre por haver entre ela e os noivos algum grau de
parentesco. Portanto, possivelmente, Maria, como parte da família, estava
ajudando nos preparativos para a celebração. Por isso, já estava presente. Até
porque, Segundo R. de Vaux, naquele tempo “a festa (de casamento) durava
normalmente sete dias, Gn 29.27; Jz 14.12, e podia se prolongar por até duas
semanas...” (2004, p. 57). Uma festa dessas proporções certamente requereria uma
grande provisão de suprimentos, bem como uma boa administração destes. Acredito
que a mãe de Jesus estava auxiliando nessa área. Daí a razão de sua preocupação
com a falta de vinho. Isto é, nem para Maria o vinho era tão importante; seu
desassossego era por causa da festa, não da bebida em si. A ausência do vinho
marcaria negativamente a festa de casamento do casal.
O mais interessante, no tocante à
suposta tragédia da ausência do vinho, é que os noivos nem tomam conhecimento
do fato. Ou seja, a “alegria” não acabou em momento algum! Como podem, então,
afirmar alguns pregadores que a alegria havia acabado, e que Jesus a devolveu? Não
faz sentido algum! Nem o mestre-sala soube do ocorrido. Tanto, que, ao invés de
exaltar Jesus pelo milagre, ele elogia o noivo pela qualidade da bebida. Portanto,
fora Jesus, seus discípulos e Maria, somente os empregados contemplaram a escassez
do vinho.
Além de não “devolver” a alegria à festa,
a presença de Jesus não levou alegria à celebração. Ao ler isso, é possível que
você esteja me chamando de herege, haja vista que a grande maioria dos
pregadores afirma justamente o oposto. “A presença de Jesus trouxe alegria ao
casamento”. A despeito dessas frases feitas, pense comigo: eles estavam numa festa!
Você já viu uma comemoração sem alegria? Eles estavam felizes por causa do matrimônio,
oras. Jesus não os fez ficarem felizes, eles já estavam! Não estou dizendo, com
isso, que a presença de Jesus não traz alegria. Pois traz sim. Só estou
afirmando que o texto não trata disso. Mas do que o texto fala então? Ah,
chegamos ao ponto: do que João está falando? Qual o seu propósito? Sabe, há muitas
interpretações sobre o texto. Não tenho a presunção de apontar a minha como a
perfeita. Desejo somente lançar luz sobre alguns aspectos que, a meu ver, têm
sido relegados a um segundo plano.
Vamos pensar um pouco. Jesus acabara de
recrutar seus primeiros discípulos. Dois deles haviam sido discípulos de João
Batista. Isto é, até então, seguiram um homem que não tinha casa
(possivelmente, morava numa caverna), que não se vestia como a maioria e que
mantinha uma dieta peculiar. Agora, entretanto, eram seguidores de um homem que
tinha uma casa (João 1.38,39), não seguia nenhuma dieta e se vestia como
qualquer outro judeu (tanto que a mulher samaritana o reconhece como judeu –
João 4). Para complicar ainda mais a situação, a primeira atitude de Jesus na
condução daqueles homens é leva-los a uma festa. Ora, todos esperavam que Ele
agisse diferente. Afinal de contas, Ele era o messias prometido. Contudo, ao
invés de ir pregar, como fazia João, ou reunir um exército, de acordo com a
expectativa de muitos, Jesus os convida para ir a uma festa na Galileia. Provavelmente,
isso contribuiu para que os discípulos questionassem: será que Ele é mesmo o
messias? O próprio João Batista, em dado momento, chega a ter dúvidas (Mt
11.2,3). Não é à toa que o texto mostra que, antes do milagre, faltava-lhes fé
(Jo 2.11).
Percebendo que seus discípulos
enxergavam a partir de uma concepção limitada de seu ministério, Jesus realiza um
milagre, a fim de elevar a fé deles a uma nova dimensão. O Filho de Deus não baseou
suas atitudes naquilo que as pessoas queriam. Maria queria repor o vinho, os
discípulos esperavam um comportamento ascético, mas o que todos precisavam era
de fé. Sabendo disso, Ele transformou a água em vinho; não por causa do
casamento, dos convidados, da festa e, nem mesmo, para atender ao pedido de Sua
mãe. Ele o fez para que os discípulos cressem nele, não apenas como um
guerreiro, não somente como humano, mas como o Filho de Deus.
À luz dessa interpretação, fica uma
mensagem evidente: Jesus tem que ser o centro sempre! Só Ele sabe o que realmente
precisamos. Temos de seguir a orientação de Maria e “fazer tudo quanto Ele
disser”. Mesmo que falte vinho, ainda que nossos desejos e expectativas não se
tornem realidade... o que Jesus tem para nós é sempre melhor! Não podemos focar
os milagres. O próprio Cristo não fez. Ele transformou a água em vinho por
causa das pessoas. Não houve cerimonial, nem rito, nem uma performance teatral.
Simplesmente, ele disse que enchessem as talhas.
Jesus não gostava do show que vemos hoje
em dia. Para um milagre acontecer, é necessário todo um aparato simbólico e
ritual. Tem dia marcado e tudo. Será que isso está acordo com a Bíblia? Acho
que não. Mesmo assim, o povo continua sendo arrastado por esse tipo de
manifestação fenomênica. Como diz a Escritura: “o meu povo foi destruído,
porque lhe faltou o conhecimento” (Os 4.6). Que pena...
Pr.
Cremilson Meirelles
BIBLIOGRAFIA
CHAMPLIM, Russel Norman, 1933- O Novo Testamento Interpretado: versículo por versículo: volume 2: Lucas, João. São Paulo: Hagnos, 2002.
DE VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida
Nova, 2004.
YANCEY, Philip; BRAND, Paul. A imagem e semelhança de deus. uma
analogia entre o corpo humano e o corpo de Cristo. São Paulo: Editora Vida,
2003.
REVISITANDO AS BODAS DE CANÁ
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