Um dos grandes problemas relativos à interpretação do
texto bíblico, sem sombra de dúvida, é o anacronismo que caracteriza o
entendimento de muitos, mormente os leigos, quando expõem as narrativas da
Sagrada Escritura. Porquanto, com muita frequência, ouvimos, em nossas
comunidades de fé, comentários, mensagens, e, até mesmo, “estudos” que não
levam em conta o contexto histórico-cultural dos relatos bíblicos. Isto gera,
inevitavelmente, como bem disse o teólogo John Stott (1994), um “Cristianismo
de mente vazia”. Há zelo, mas não há entendimento (Rm 10.2). Isto porque, esses
“intérpretes” insistem na ideia de que os personagens que viveram em períodos e
lugares totalmente distintos tinham o mesmo conhecimento a respeito de Deus. Há
quem creia que Abraão e Paulo, por exemplo, estavam no mesmo patamar em relação
ao conhecimento teológico, o que é claramente um absurdo.
Essa perspectiva não leva em conta o
caráter progressivo da revelação divina. Deus revelou-se gradativamente, ou
seja, passo a passo. Por conseguinte, Paulo, por estar em um ponto mais avançado
dessa revelação, naturalmente, tinha um conhecimento mais detalhado a respeito
do ser divino. O entendimento de Abraão, por outro lado, era extremamente
parco. Ele fora criado numa tradição pagã, a qual adorava vários deuses e
vinculava objetos a essas divindades. Isto é claramente evidenciado em Josué
24.2, onde o personagem que dá nome ao livro, ao discursar diante do povo,
declara: “assim diz o Senhor Deus de Israel: Além do rio habitaram antigamente
vossos pais, Terá, pai de Abraão e pai de Naor; e serviram a outros deuses[1]”.
Resumindo, Abraão, assim como seus familiares, era pagão; e, embora Deus o
tivesse chamado para uma nova vivência religiosa, muitos elementos de sua
antiga fé permaneceram entranhados em sua cosmovisão. Afinal de contas, por
setenta e cinco anos (Gn 12.4) o patriarca vivera naquela doutrina. Ele não
conhecia nada a respeito de Yahweh; tudo o que fazia era baseado no
conhecimento que o paganismo lhe dera. Tanto que, quando Deus o chama, a
primeira coisa que ele faz é procurar um carvalho (Gn 12.6,7). Isso evidencia
uma crença comum em todo o antigo Oriente Próximo, a saber: a atribuição de
sacralidade a algumas árvores.
Essas “árvores sagradas”, como sublinha Vaux (2004), eram parte
integrante da vida religiosa em todo o Crescente Fértil, região na qual Abraão
viveu durante muito tempo. Contudo, ainda que essa sacralização de árvores
fosse comum na época do patriarca, vale salientar que elas não eram cultuadas
ou divinizadas, mas funcionavam apenas como acessórios do culto de divindades
celestes (idem). Portanto, eram revestidas de um simbolismo que as associava à
fertilidade concedida pelo deus do céu, o qual, segundo a crença primitiva,
derramava o seu sêmen (a chuva) para fecundar a terra (também vista como uma
deusa). Nesse contexto, a árvore usada com maior frequência para fins
religiosos, conforme explica Eliade (2008), era o carvalho. Isto porque, frequentemente
era atingida por raios, os quais estavam diretamente ligados aos deuses
celestes. A esse respeito, inclusive, o historiador romeno salienta que o raio
era, aos olhos do pagão primitivo, “a arma do deus do Céu em todas as
mitologias e um local por ele atingido com um raio torna-se sagrado, os homens
por ele fulminados ficam consagrados” (op. cit., p. 52). Por isso, nas regiões
onde esses deuses eram adorados, o carvalho estava investido do poder e
prestígios associados ao ser supremo.
Esse era o raciocínio de Abraão. Para ele, o carvalho marcava o local de
culto; funcionando como uma espécie de “antena” que permitia a conexão com o
divino. Assim, quando Deus fala com o patriarca, imediatamente, ele procura o
“lugar” (māqôm[2])
de Siquém, o carvalho de Moré (Gn 12.6). Isto porque, na mentalidade arcaica de
Abraão, se Deus disse que iria lhe mostrar a terra prometida, ele deveria
dirigir-se a um carvalho para que a voz do Senhor fosse devidamente ouvida. O
mais interessante, é que, após chegar ao local do carvalho, Deus aparece a ele
e lhe transmite uma mensagem. Isto é, o Senhor respeita a cultura de Abraão, e
vai ao seu encontro de acordo com sua crença. Em seguida, o texto sublinha que
ali, ao pé do carvalho, onde Deus lhe falara, o patriarca edificou um altar (Gn
12.7), reforçando a ideia de que o local estava revestido de sacralidade, e que
era, portanto, um ponto de conexão com o altíssimo. O mais impressionante, no
entanto, é que, além de buscar o carvalho de Moré, com o fito de ouvir a voz do
Senhor, Abraão decidiu residir no meio dos carvalhos de Manre[3]
(também conhecido como Mambré) e, segundo o relato bíblico, “edificou ali um
altar ao Senhor” (Gn 13.18). Isto é, o patriarca manteve a crença pagã que
associava Deus ao carvalho, mesmo depois de encontrar-se com o altíssimo.
Josefo (2005), inclusive, ressalta que, no período em que morou junto aos
carvalhos, Abraão orava incessantemente, mostrando que o patriarca ainda vinculava
a árvore ao Deus que lhe falara. Mesmo assim, naquele lugar ao qual o homem,
ingenuamente, atribuía sacralidade, Deus foi ao encontro de Abraão (Gn 18.1).
Entretanto, o que chama a atenção é que muitos cristãos do século XXI,
ainda agem como homens que, tendo os primeiros contatos com o Deus verdadeiro,
atribuem sacralidade a lugares, tal como o monte das oliveiras, o rio Jordão, o
monte Sinai, o templo X ou Y; e, por outro lado, revestem de malignidade os
lugares onde os que professam credos diferentes se reúnem. Ora, Deus não fez
nem uma nem outra coisa, porém, entendendo que Abraão era um homem de seu
tempo, o Senhor apresentou-se gradativamente, trabalhando em seu coração a fé
verdadeira que se tornaria referencial para as gerações futuras. Ele sabia que
o patriarca não tinha o mesmo conhecimento teológico de Paulo. Assim, relevou
os aspectos rudimentares de sua devoção e conduziu-o a um relacionamento íntimo
consigo. Como podemos nós, então, priorizarmos discussões sem fim com pessoas
que não creem “da maneira correta”? Deveríamos, na verdade, agirmos como o
Senhor agiu: gradativamente e com amor apresentarmos as boas novas. Em
contrapartida, é importante frisar que aquele que já abraçou a fé, que tem em
mãos a revelação completa (a Bíblia), não pode agir como Abraão. Pois, associar
Deus a um lugar, objeto ou pessoa é coisa de quem não conhece toda a revelação.
Foi justamente por isso que Deus, mais à frente, vendo que o pensamento pagão
demonstrado pelo pai da fé permanecera no meio de Israel, enviou profetas para
condenar tais práticas (Is 1.29; 57.5; Os 4.13). Afinal, a lei já havia sido
dada. Não era aceitável que os israelitas continuassem sacrificando debaixo do
carvalho.
É impressionante como o sincretismo é atraente. Até mesmo, homens
consagrados como Josué utilizaram o carvalho como referencial religioso. Em
Josué 24.26, por exemplo, o sucessor de Moisés, coloca uma grande pedra debaixo
do carvalho que estava junto a um antigo santuário dedicado a Deus em Siquém,
mesmo lugar onde Abraão edificou um altar ao pé do carvalho. Coincidência?
Creio que não. Possivelmente, com o passar do tempo, o carvalho de Moré passou
a ser venerado por causa de sua ligação com o patriarca. Então, quando Josué,
pretende sacralizar uma pedra para que esta sirva de memorial do concerto feito
com o povo, o primeiro referencial religioso que vem à sua mente é o carvalho. Isto
revela a força da influência cultural do paganismo oriental sobre a fé
israelita. Essa influência pode ser percebida até mesmo em literaturas
extra-bíblicas. Flávio Josefo, por exemplo, também supervaloriza a árvore e
também a associa ao patriarca. Porquanto, de acordo com o historiador judeu, “o
Carvalho de Abraão existia desde a criação do mundo e se chamava Ogigues; na
mitologia grega, Ogigues foi o fundador de Eleusis e estava, assim, relacionado
com os mistérios” (Apud Vaux p. 330).
Mesmo assim, o amor de Deus nos surpreende. Ele poderia ter dado um
basta nas reminiscências do paganismo, desde o início. Porém, Ele permitiu que aquelas
permanecessem mesmo após a morte de Abraão. Isaque, por exemplo, enterrou seu
pai (Gn 25.9) e Débora, ama de Rebeca (Gn 35.8), em uma cova em frente aos
carvalhos de Manre. Da mesma forma, Jacó, ao lado de Esaú, enterrou Isaque no
mesmo local (Gn 35.27-29) e solicitou a seus filhos que também o sepultassem
ali (Gn 49.28-30). É bem provável que essa recorrência funerária tivesse como
pano de fundo a crença pagã de que a árvore era o receptáculo das almas dos
antepassados, visto que, em muitas culturas, ela representa a vida. Talvez, por
isso, Manre tenha se tornado, mais à frente, um local de peregrinação. Sobre
isso, de Vaux assevera que “nos primeiros séculos de nossa era, Manre era um
centro de peregrinação onde se venerava a árvore de Abraão, onde cada ano
acontecia uma procissão” (2004, p. 330). Todavia, mesmo diante do sincretismo que
caracterizava os patriarcas, Deus, sem tocar diretamente no assunto,
aproximou-se daqueles homens a fim de revelar-se; abençoou-os, supriu suas
necessidades, mostrando um amor incondicional, que se estende a toda a
humanidade. Ao contemplar essa manifestação amorosa de Deus, lembro-me
imediatamente de Romanos 5.8, que diz: “mas Deus prova o seu amor para conosco
em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores”. Mesmo que os
patriarcas vivessem uma fé sincrética, Deus os amou, visitou, abençoou e cuidou
deles, usando-os, inclusive, como instrumentos para transmissão da Sua
revelação à humanidade. Aleluia!
Como imitadores de Deus (Ef 5.1), é importante que observemos o exemplo
do Senhor e mostremos a mesma graça a esse mundo permeado de ódio, violência,
vingança e desamor. Precisamos compreender que nosso propósito não é mostrar
conhecimento ganhando debates; nossa meta é apresentar o Evangelho, vivido e
pregado. Destarte, deixemos de lado toda a soberba e animosidade em relação ao
outro, e sigamos amando e alcançando o mundo com a graça do Senhor Jesus.
Pr. Cremilson Meirelles
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Tradução de
Fernando Tomaz e Natália Nunes. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
JOSEFO, Flávio. História dos Hebreus. 9 ed. Rio de
Janeiro: CPAD. 2005.
VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004.
STOTT, John
R. W. Crer é também Pensar.
A importância da mente cristã. Trad. Milton Azevedo Andrade. Sexta impressão.
ABU Editora. São Paulo, SP. 1994.
O CARVALHO NA BÍBLIA
Reviewed by Pr. Cremilson Meirelles
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18:42
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Muito me edificou esse Estudo Parabéns o Senhor conceda mais e mais sabedoria a seu servo!!
ResponderExcluirAmém! Continue acessando. Há outros artigos relevantes no blog. Dê uma navegada e confira.
ExcluirApós ler esse seu estudo levantei a minha voz e Glorifiquei aí SENHOR JESUS CRISTO pela sua vida.Eu concordo plenamente com o Senhor,esse sincretismo religioso tem que acabar,o povo de DEUS tem que aprender Amar mais,principalmente A DEUS e ao Próximo.Parabéns Pastor,Que DEUS Continue Te Abençoand.
ExcluirApós ler esse seu estudo levantei a minha voz e Glorifiquei aí SENHOR JESUS CRISTO pela sua vida.Eu concordo plenamente com o Senhor,esse sincretismo religioso tem que acabar,o povo de DEUS tem que aprender Amar mais,principalmente A DEUS e ao Próximo.Parabéns Pastor,Que DEUS Continue Te Abençoand.
ExcluirAjudou muito pastor, que Deus nosso Pai te abençoe grandemente e te dê cada dia mais a Sabedoria que provém do seu Santo Espírito para aprender e ensinar os seus Mistérios. Que a Graça e a Paz do Senhor seja convosco.
ResponderExcluirobrigada Pastor por partilhar de seu conhecimento para conosco
ResponderExcluirFico feliz em poder ajudar. Continue acessando o blog. Há outros artigos relevantes.
ExcluirDeus me deu uma mensagem sobre carvalhos. E logo para entende-los pesquisei e cai de paraquedas aqui no blog do irmão. Deus o abençoe, posso dizer que fui acrescentado ao ler sua explanação sobre o assunto.
ResponderExcluirQue bom! É um prazer poder ajudar. Dê uma navegada no blog e você encontrará outros artigos relevantes.
ExcluirMuito bom o texto! Congratulações ilustre de Deus!
ResponderExcluirAgradeço. Continue acompanhando o blog. Há outros textos relevantes. Deus o abençoe!
ExcluirCaríssimo prof.Cremilson, estou encantada com os seus escritos. Que Deus continue te abençoando com muita sabedoria.
ResponderExcluirAmém, minha irmã. Fico feliz em poder contribuir para sua reflexão.
ExcluirÓtimo estudo, muito esclarecedor
ResponderExcluirBom dia Pastor.
ResponderExcluirTudo bem?
Fiquei muito feliz pela explicação do Carvalho.
Posso REPASSAR?
Muito obrigado por nos oferecer este conteúdo tão edificante e tão esclarecedor. Que Deus em sua soberana graça lhe conceda sabedoria do Alto a cada dia.
ResponderExcluirAmém! Obrigado.
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